terça-feira, 29 de janeiro de 2013

O apreço aos títulos e às honrarias no século XIX

Frequentemente quando transcrevemos e analisamos documentos antigos de Pará de Minas e região no acervo documental “Mesopotâmia Mineira”, deparamo-nos com fragmentos de texto que desnudam a forma como o povo oitocentista interpretava a trama social na qual estavam inseridos.
Sérgio Buarque de Holanda analisa, em sua obra “Raízes do Brasil”, a inclinação do europeu (português), ocupante das terras do Brasil, pelas glórias e riquezas que destas terras podiam ser retirados. As atividades profissionais – principalmente aquelas braçais, e tão necessárias ao cultivo das vastas terras encontradas para obter as riquezas desejadas – são consideradas, no entanto, desprezíveis e indignas de homens nobres e valorosos. Essa compleição avessa aos trabalhos braçais, a aptidão à uma vida sossegada distante do percalço da manutenção de uma existência difícil nos trópicos e reforçada pelos títulos que não raro são citados nos documentos – como capitães, tenentes, coronéis, majore – gravados a bico de pena para a posteridade, moldam o imaginário dos Portugueses no Brasil e em nossa região.
Essa “ética do ócio” contribuirá para a manutenção de um sistema de exploração do outro – fundamentado na tradição Ocidental, uma vez que há registro desse comportamento desde os antigos gregos (Florenzano, “O mundo antigo: economia e sociedade”. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 42) – pelos “nobres” europeus detentores de grandes propriedades. Não raro, até mesmo aqueles que nem tantas posses têm ou, que as perderam no decorrer dos anos, usufruam e assimilem esse sistema.
Saint-Hilaire em suas viagens por Minas Gerais, no início do século XIX, relata as grandiosas manifestações religiosas observadas por ele. A princípio ele fica maravilhado com as portentosas manifestações de fé. No entanto, ao verificar mais de perto, essa imagem de religiosidade cae por terra. Como ele mesmo escreve, a religião é só verniz, ou seja, não tem profundidade. O que se deseja realmente é sobrepujar irmandades – associação ou confraria – rivais; impor-se com distinção, com autoridade aos outros, externar uma condição de superioridade reforçando um distanciamento social. Essas manifestações prestavam-se, afinal, a demonstrar o quanto nossa sociedade estava engessada, dividida em castas intransponíveis e à manutenção do Status-quo.
Através da análise em documentos do século XIX, de Pará de Minas e região, podemos destacar alguns fragmentos que comprovam as palavras de Sérgio Buarque de Holanda e Saint-Hilaire.
O processo crime FCAM-PRC-XX-03(45) de 1892, suposto homicídio ocorrido em Cajurú em 1890, analisado pelo grupo, nota-se a insistência ao referir-se ao réu, identificando-o sempre – e, como já havia sido abolida a escravidão no Brasil – como “Germano ex-escravo de Ribeiro”. Essa designação é como um estigma que parece demarcar o lugar do indivíduo citado no meio social.
Em outro momento, no documento 2490, processo 1299, maço 47, “inventario dos bens do finado Tenente Coronel Manoel Teixeira Duarte”, falecido em 18 de maio de 1881 deixando testamento. O senhor Manoel Teixeira Duarte, distinto comerciante, conforme pôde-se deduzir com a leitura do inventário e, também em outros documentos, da antiga cidade do Pará, era possuidor do título de “Tenente Coronel”, e que é citado com insistência ao longo do processo, sempre anteposto ao seu nome.
Na Prestação de contas de 1858, sobre a administração das obras de construção da antiga matriz de Pará de Minas, o escrivão refere-se ao administrador: “Diz o Promotor de Capelas e Resíduos ao que sendo fallecido o Alfs. [Alferes] Ricardo Joaquim Leitão(...)” (p.2).
No documento 6186, processo 1948, maço 69, inventário dos bens de Custódio Rodrigues Nogueira Penido, de 1886, pode-se ler ao longo do documento, quando refere-se ao inventariado, “Tenente Coronel Custódio Rodrigues Nogueira Penido”. No documento 2613, processo 1413, maço 53, Avaliação e partilha dos bens deixados pelo finado Pedro Dornas dos Santos, de 1887, quando citado aparece:”Alferes Pedro Dornas dos Santos”. Mais uma vez o título está presente precedendo o nome do cidadão.
Além dos títulos citados, quem não se lembra daqueles conferidos, pela coroa ou o Imperador, àqueles endinheirados senhores que se destacavam no cenário nacional no século XIX: São Barões; Viscondes; Marqueses. Irineu Evangelista, por exemplo, vira Barão de Mauá.
Isto posto, observando esses pequenos fragmentos e lembrando-nos de alguns ilustres conterrâneos que se eternizaram batizando nomes de ruas de nossa cidade, só para citar alguns: Major Silvino; Coronel Domingos Justino; Major Manoel Antônio; entre outros. A observação de pequenos detalhes em documentos, a priori inocentes, podem ajudar a reforçar ou, ainda, refutar teses. Os indícios para reconstruir a história de um local, podem estar “soltos” por ai, basta que alguém faça a ligação conectando-os às teorias históricas.
Finalmente, a premissa de que em nossa sociedade impera o gosto pelos títulos, pela vida tranquila, sem as preocupações com a manutenção da existência e o desprezo pelos trabalhos manuais citados por Sérgio Buarque de Holanda e o “vê tudo”, o cavaleiro andante do século XIX, Saint-Hilaire, parece se fundamentar quando levantamos alguns fragmentos colecionados nos documentos antigos de nossa região.

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Referências
Artigo publicado no Jornal Diário em 03 de dezembro de 2007. Escrito por: Joandre Oliveira Melo, integrante do grupo Mesopotâmia Mineira:


Projeto Mesopotâmia: Geraldo F. Fonte Boa (Professor da FAPAM e Coord. do Projeto. E-mail: phonteboa@gmail.com.br), Flávio M. S. (Coord. Curso de História FAPAM. HP: www.nwm.com.br/fms), Ana Maria Campos (MUSPAM); Professores formados em História na FAPAM: Alaércio Delfino, Alfredo Couto, Damary de Carvalho, Geraldo Rodrigues, Hoffman Elias e Joandre Oliveira Melo. Aluna do curso de História/Fapam: Isabel Moura. Site FAPAM: www.fapam.edu.br

Um comentário:

  1. Olá!
    Primeiramente obrigada por passar no meu blog, e por deixar sua reflexão.

    Bom, acompanhando seu pensamento, para tentar compreender o que seria justo, poderíamos começar pelo que não é. Porém, acredito eu que o ''justo'' realmente está fora de ser definido, e o contexto no qual ele estiver inserido, talvez o determine, ou não. Na verdade ''justo'' é apenas uma palavra para definir alguma verdade. Na relação, com o que escrevi, quis por em reflexão qual valor damos para nossas emoções, e para a razão, e outros sentidos. Para chegar em um consenso do que é justo. A humanidade (nós) estamos cada vez mais ligados ao superficial, sem levar em conta os detalhes.

    Quanto ao Gnosticismo Samaeliano, algum dia escreverei algo sobre, o assunto é muito abrangente, com certeza irei falando por fragmentos. Pode me sugerir também.. algo que tenha dúvida ou que queira compreender melhor sobre o gnosticismo. E se eu souber darei alguma nota..:)


    Estou acompanhando o seu blog!Gostei muito do estilo, e dos assuntos em geral.

    Quanto ao presente post;

    ''A religião é só verniz, não tem profundidade (..) Sobrepujar irmandades, impor-se com distinção, com autoridades aos outros.''

    Estava refletindo sobre isso..
    talvez, não seja só a religião que faça isso, e que seja desta maneira, o sistema em si é desta forma. Só me vem a mente que os seres ''humanos'', são movidos em sua maioria pelo egoismo. Que somando-se os mesmos interesses acabe gerando sempre conflitos.
    Culpamos sempre a filosofia em si, e esquecemos dos filósofos.

    A premissa de nossa sociedade dar um alto valor para os títulos do que pela própria manutenção da existência é realmente muito considerável. E lamentável.

    Assunto extenso... hehehe

    Abraço! :)

    B&W Bruna Medeiros







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