segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Reminiscências de Karl Marx


Certa vez, conforme consta em alguns escritos, Karl Marx (1818-1883) teria pronunciado sobre o trabalho de toda a sua vida - Marx escrevera longa e concisamente sobre o capital: sua dinâmica e seus efeitos sobre a vida dos Homens -, "nunca se falou sobre o capital, tendo tanta falta dele".

A despeito da afirmação de Marx, hoje, seu trabalho vale milhões. Milhões do "vil metal", denominação dele acerca do dinheiro. Embora Marx tenha escrito sua obra sob extrema miséria e penúria, muitos anos após a publicação de seus trabalhos, milhares de estudiosos, ganharam a vida ou construíram seus sistemas filosóficos, debruçando-se sobre seus escritos.

Talvez o último dos filósofos "idealizadores" de sistemas, Marx, apesar de ter produzido, uma obra fenomenal, levou uma vida errante, como um Dom Quixote, lutando contra moinhos de vento.

Os infortúnios de uma vida paupérrima dilaceraram sua família; porém, não esmoreceram seu ímpeto em legar à posteridade uma vasta e rica obra.

Marx casou-se com Jenny Von Westphalen, filha de um barão Prussiano, em junho de 1843. (Mais detalhes siga os links dos nomes). Sabe-se que os dois se amavam desde muito jovens. A sra. Marx acompanhou e apoiou todas as terríveis privações que o marido sofrera, até a sua morte em Londres em dezembro de 1881. Após morte de sua esposa, Marx, entrou em decadência total - física e moralmente - e após a morte súbita de uma de suas filhas não mais se recuperou, falecendo a 18 de março de 1883.

Abaixo, gostaria de compartilhar uma carta escrita pela sra. Marx ao sr. Joseph Weydemeyer, amigo da família. Os trechos demonstram as atribulações de uma vida de privações. O excerto foi extraído da obra: "O Conceito Marxista do Homem", escrito por Erich Fromm (ver bibliografia).

* * * * *

De Jenny Marx a Joseph weydemeyer

Londres, 20 de maio de 1850
Caro Herr Weydemeyer:

Em breve fará um ano que recebi hospitalidade tão amistosa e cordial de si [sic] e de sua querida esposa, pois me senti tão confortavelmente à vontade em sua casa. Todo esse tempo nem dei sinal de vida: fiquei em silêncio quando sua esposa escreveu-me uma carta tão amiga e nem rompi o silêncio quando recebemos a notícia do nascimento de seu filho. Meu silêncio tem-me afligido muitas vezes, mas a maior parte do tempo eu não podia escrever e mesmo hoje acho isso difícil, bem difícil.

As circunstâncias, contudo, obrigam-me a pegar da pena. Peço-lhe que nos mande o mais depressa possível qualquer dinheiro que tenha sido ou venha a ser recebido da Revue. Certamente ninguém pode censurar-nos por jamais termos feito muito caso dos sacrifícios que vimos fazendo e suportando há anos, o público nunca ou quase nunca foi informado de nossa situação; meu marido é muito sensível nessas questões e preferiria sacrificar seu último recurso a apelar para a mendicância democrática como fazem os "grandes homens" reconhecidos oficialmente. Todavia, ele poderia ter contado com apoio ativo e enérgico dos amigos à Revue dele, particularmente dos de Colônia. Poderia ter contado com esse apoio antes de mais nada por parte dos que sabiam de seus sacrifícios pela Rheinische Zeitung. Em vez disso, porém, o negócio foi completamente arruinado por administração negligente e desorganizada, e não é possível dizer o que foi pior, se os atrasos dos livreiros, dos gerentes da empresa, dos conhecidos de Colônia ou a atitude dos democratas em geral.

Aqui, meu marido está quase esmagado pelas preocupações mesquinhas da vida de forma tão revoltante que tem precisado de toda sua energia, calma, sentimento nítido e calmo de dignidade para conservar-se nessa pugna de cada dia e de cada hora. Você conhece, caro Herr Weydemeyer, os sacrifícios feitos por meu marido pelo jornal. Inverteu milhares em dinheiro, assumiu os encargos de proprietário, induzido por valiosos democratas que do contrário teriam de responder pessoalmente pelas dívidas, numa época em que eram escassas as perspectivas de sucesso. Para salvar a honra política do jornal e a honra cívica de seus conhecidos de Colônia, ele ficou com toda a responsabilidade; sacrificou a tipografia, sacrificou todos os seus rendimento, e antes de sair chegou até a tomar emprestados 300 táleres para pagar o aluguel das instalações recém-alugadas e os notáveis salários dos redatores, etc. E ele teve que ser enxotado à força. Você sabe que não guardamos nada para nós. Fui a Francoforte para empenhar minha prataria - a última coisa que restava - e mandei vender minha mobília em Colônia porque estava em risco de ter minha roupa de cama e mesa e tudo o mais seqüestrados. Ao começar o infeliz período de contra-revolução, meu marido foi para Paris e segui-o com minhas três filhas. Mal havíamo-nos instalado em Paris quando ele foi expulso, e até eu e minhas filhas tivemos negada permissão para continuarmos residindo ali. Acompanhei-o para além-mar. Um mês depois nasceu nosso quarto filho. É preciso conhecer Londres e a situação daqui para entender o que é ter três crianças e dar à luz uma quarta. Só de aluguel tínhamos de pagar 42 táleres por mês. Conseguimos fazer face a isso com dinheiro que recebíamos, mas nossos parcos recursos estavam esgotados quando a Revue foi publicada. Contrariando o acordo, não fomos pagos, e mais tarde somente em pequenas somas de modo que nossa situação aqui era quase alarmante.

Descreverei para você apenas um dia daquela vida, exatamente como se passou, e verá que poucos imigrantes, talvez, tenham sofrido coisa assim. Como as amas aqui são muito caras, resolvi alimentar meu bebe pessoalmente, apesar de contínuas dores terríveis no seio e nas costas. Mas o pobre anjinho mamava tanta preocupação e ansiedade recalcada que estava sempre mal e sofria horrivelmente dia e noite. Desde que veio ao mundo ainda não dormiu uma única noite, no máximo duas ou três horas e isso raramente. Recentemente tem tido violentas convulsões também, e tem estado sempre entre a vida e a morte. Devido ao sofrimento, ele mamava com tanta força que meu seio ficou esfolado e a pele rachou, e muitas vezes o sangue entrava por sua boquinha trêmula. Eu estava um dia sentada assim com ele quando a zeladora de nossa casa apareceu. Tínhamos pago 250 táleres a ela durante o inverno combinado de dar o dinheiro no futuro não a ela mas ao senhorio, que tinha um mandato judicial contra ela. Ela negou o acordo e exigiu cinco libras que ainda lhe devíamos. Como não tínhamos o dinheiro no momento (a carta de Naut só chegou mais tarde), vieram dois meirinhos e seqüestraram todas as minhas escassas posses - roupas de linho, camas, roupas -, tudo, até o berço de meu pobre filhinho e os melhores brinquedos das minhas filhas, que ficaram chorando amargamente. Eles ameaçaram de levar tudo dentro de duas horas. Eu teria então que ficar no chão nu com minhas filhas enregeladas e meu peito doente. Nosso amigo Schramm foi correndo à cidade para buscar ajuda para nós. Entrou em uma carruagem, de aluguel, mas os cavalos dispararam ele pulou fora e foi trazido sangrando de volta para a casa, onde eu estava chorando com minhas pobres crianças tiritando.

Tivemos que deixar a casa no dia seguinte. Estava frio, chuvoso e nublado. Meu marido procurou acomodações para nós. Quando mencionava as quatro crianças, ninguém nos queria aceitar. Finalmente, um amigo auxiliou-nos, pagamos nosso aluguel e vendi às pressas todas as camas para pagar o farmacêutico, o padeiro, o açougueiro e o leiteiro que, à vista da penhora, de repente assediaram-me com suas contas. As camas que vendêramos foram tiradas e colocadas em um carrinho. O que estava acontecendo? já passava bem do pôr do sol; estávamos transgredindo a lei inglesa. O senhorio veio correndo para nós com dois policiais, sustentando que bem poderia haver alguns de seus pertences entre as coisas e que queríamos ir para o estrangeiro. Em menos de cinco minutos, havia duzentas ou trezentas pessoas paradas em trono de nossa porta - toda a turba de Chelsea. As camas foram trazidas de volta novamente - não poderiam ser entregues ao comprador antes do nascer do sol, no dia seguinte. Depois de termos vendido todos os nossos bens ficamos em condições de pagar tudo o que devíamos até o último ceitil. Fui com minhas queridinhas para os dois pequenos quartos que agora ocupamos no Hotel Alemão, nº 1, Rua Leicester, Preça Leicester. Ali, por £ 5 semanais. receberam-nos benevolamente.

Perdoe-me, caro amigo, por ter sido tão extensa e verbosa para descrever um único dia de nossa vida aqui. É irrefletido, sei disso, mas meu coração está querendo estourar esta noite, e preciso pelo menos uma vez desabafá-lo com meu mais antigo, melhor e mais sincero amigo. Não pense que essas misérias me abateram: sei muito bem que nossa luta não é isolada e que eu em particular, sou um dos escolhidos, felizes, favoritos, pois meu querido marido, o esteio de minha vida, ainda está a meu lado. O que realmente tortura minha própria alma e faz meu coração sangrar é ter de sofrer tanto por ninharias assim, que tão pouco pudesse ter sido feito para auxiliá-lo, e que ele que tão pouco pudesse ter sido feito para auxiliá-lo, e que ele que tão espontânea e alegremente ajudou a tantos outros, ficasse assim desamparado. Mas não creia, caro Herr Weydemeyer, que façamos exigência a quem quer que seja. A única coisa que meu marido podria ter pedido daqueles a quem deu suas idéias, seu estímulo e seu apoio seria mostrar mais entusiasmo no negócio e mais ajuda para a Revue. Orgulho-me e ouso fazer tal afirmação. Esse pouco lhe era devido. Não creio que fosse injusto para ninguém. É isso que me entristece. Mas meu marido é de opinão diferente. Nunca, nem mesmo nos momentos mais medonhos, ele perdeu a confiança no futuro nem mesmo seu humor jovial, e ficou satisfeito ao ver-me aninhada e nossas quatro amadas crianças aninhando-se junto da mãe querida. Ele não sabe, caro Herr Weydemeyer, que eu lhe escrevi com tanta minúcia sobre nossa situação; por isso, peço-lhe que não mencione estas linhas. Tudo que ele sabe é que lhe pedi, em nome dele, que apresse o mais possível o recolhimento e remessa de nosso dinheiro.

Adeus, caro amigo. Dê a sua esposa minhas lembranças mais carinhosas e beije seu anjinho por esta mãe que derramou muitas lágrimas pelo próprio bebe. Nossas três filhas mais velhas estão bonitas, sadias, bem dispostas e boas, e nosso rechonchudo garotinho cheio de bom-humor e das idéias mais gozadas. O pequeno diabete canta o dia inteiro com um sentimento espantoso numa voz trovejante. A casa sacode quando ele anuncia numa voz temível as palavras da Marseillaise de Freiligrath:

Vem, junho, e traze-nos nobres façanhas!
A feitos de fama nosso coração aspira.

Talvez seja o destino histórico daquele mês, como de seus predecessores, de inaugurar a luta gigantesca em que todos novamente apertaremos as mãos. Adeus!

(*) Impressa no Die Neue Zeit. vol.2, 1906-7. Traduzida do alemão, segundo o texto do jornal comparado com um fotocópia do manuscrit0.

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Referências Bibliográficas:

FROMM, Erich. De Jenny Marx a Joseph Weydemeyer. In.: Conceito marxista do homem. Trad. Octávio Alves Velho, 6ª ed. Zahar Editores, Rio de Janeiro: 1975 pp. 207-211.

(*) Foto de Jenny Von Westphalia, disponível na Wikipédia.

Um comentário:

  1. IMPRESSIONANTE. SOMENTE ALGUÉM COM SENSIBILIDADE, DIRIA ATÉ COM DESEJO POR CONHECIMENTO DO SÉCULO XIX, PODERIA SE ATENTAR PARA TAL ESCRITO. PARABÉNS E QUE VOCÊ POSSA CONSEGUIR MAIS E MAIS ESCRITOS COM TAMANHA QUALIDADE. OBRIGADO POR ME DEIXAR MUITO MAIS CULTO E ME TIRAR DA IGNORÂNCIA QUE UM DIA OS LIVROS ME CONDICIONARAM.

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