segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Um dia na vida de Torquato de Almeida

Por Joandre Oliveira Melo


Durante as leituras dos documentos no Acervo Documental Mesopotâmia Mineira, deparamo-nos com um fato interessante ocorrido com uma das figuras mais conhecidas da nossa região.

Recentemente fomos agraciados com cerca de quatrocentos documentos cartoriais – repassados pelo digníssimo Juiz da comarca de Pará de Minas – os quais somaram-se aos mais de três mil já existentes no acervo. Dentre esses documentos encontra-se o processo crime nº 673, do ano de 1900, tendo como autor a Justiça, através do promotor senhor Fernando Otávio, sendo o réu o senhor Joaquim de Souza Mattos, alcunha Joaquim Brás.

O motivo do processo crime fora o ferimento causado pelo projétil disparado de uma garrucha – uma espécie de pistola que se carrega pela boca – contra o senhor Torquato Alves de Almeida, enquanto realizavam uma permuta entre a arma supracitada, sendo esta de propriedade do senhor Joaquim Brás e um selim, proposta pelo senhor Torquato.

Abaixo transcrevemos, diretamente do texto, um resumo do incidente que vitimou Torquato Alves de Almeida e foi a causa do presente processo:

No dia 10 do corrente mês [10 de outubro de 1900] entre 10 e 11 horas do dia, nesta cidade a praça Affonso Penna, achava-se Joaquim Brás, Torquato Alves de Almeida e outros na casa comercial do cidadaõ (sic) Franscisco Torquato de Almeida [pai de Torquato Alves de Almeida], onde, com Torquato, esperimentava(sic) uma garrucha de sua propriedade, com o intuito de effetuar a permuta da mesma por um selim, pertencente a Torquato.

Findas as experiencias [Torquato deflagara dois tiros em uma tábua, de acordo com depoimento de testemunhas, citados mais à frente] e quando Joaquim Brás estava a colocar as cápsulas que haviam sido tiradas da arma, esta detonou, disparando um tiro, cujo projétil foi ferir a Torquato Alves de Almeida na regiaõ mamaria esquerda, produsindo no paciente a offensa phisica descripta no auto do corpo de delicto as fls. 3. Não tendo produsido a morte instatanea da vitima porque, por felicidade desta e por um acaso providencial -, o delinqüente achava-se assentado e o paciente de pe, o que deu logar ao resvallamento do projetil na direcçaõ da regiaõ mamaria para o omoplata(...)(p. 2 frente e verso).

No rol de testemunhas estão: Augusto Lopes Cançado, Joaquim Sebastião de Almeida, Francisco Lopes Cançado, Dorval Avelino de Almeida Paiva e Valeriano Lopes Cançado.

O delegado, Evaristo José de Mello, expediu no dia 11 de outubro de 1900 – assim que fora informado do acontecido – o pedido de exame de corpo de delito e intimou as testemunhas a comparecerem à sua presença para que prestassem seus depoimentos. Foram nomeados os doutores Cândido José Coutinho da Fonseca e João Severiano de Souza Matta, para a execução do exame médico no paciente e conclusão do auto. Destacamos abaixo, parte do texto com o laudo dos doutores, segundo consta no auto de corpo de delito:

(...)na regiam mamaria esquerda encontraram um ferimento de dez milímetros de extençaõ [sic], mais ou menos produsido por arma de fogo, da direita para a esquerda enteressando [sic] aos tecidos da regiaõ escapula umeral esquerda e alojando-se na parte anterior do osso plato(...)(P. 6 verso).

Verificamos através do exame e conclusão do auto de corpo de delito que o ferimento fora considerável provocando uma grave lesão no senhor Torquato.

Após ser notificado do ocorrido, o delegado Evaristo José de Mello instaurou inquérito e iniciou o processo, nomeando os peritos para que se procedesse ao exame de corpo de delito e intimando as testemunhas. “Vistos e examinados (...) julgo procedente o presente auto de corpo de delicto para produsir os devidos effeitos. (...) intime aos Senres o senr. escrivão intime aos Senres Augusto Lopes, Joaquim Sebastião de Almeida, Dorval Avelino de Almeida Paiva, Francisco Lopes Cançado e Valeriano Lopes Cançado, todos residentes nesta cidade”(p. 7v).

Assim, no dia dezesseis de outubro de 1900, às onze horas, na sala de audiência procedeu-se o primeiro depoimento das testemunhas na presença do delegado. No dia treze de novembro de 1900, “(...) em casa de residência do Doutor Alfredo Ribeiro, juiz substituto desta comarca, (...) as onze horas da manhã, (...) vão ser inqueridas as testemunhas deste processo a revelia do réo(...)”(p. 12).

As testemunhas intimadas a depor foram: Augusto Lopes Cançado, 24 anos, solteiro, natural da cidade do Pará; Francisco Lopes Cançado, setenta e quatro anos, viúvo, natural do município de Pitangui; Valeriano Lopes Cançado, sessenta e três anos, casado, natural do município de Pitangui; Joaquim Sebastião de Almeida, dezessete anos incompletos, solteiro, natural da Varginha e primo em segundo grau de Torquato; Dorval Avelino de Almeida Paiva, vinte e três anos, solteiro, natural de Santa Anna (hoje Itaúna), primo em segundo grau de Torquato. Todos residentes na cidade do Pará.

Todas as testemunhas narraram os fatos uniformemente, sem disparidades, apenas acrescentando alguns detalhes quando estavam perante o juiz substituto.

Todos disseram que o motivo do encontro dos dois envolvidos, Joaquim Braz e Torquato Alves de Almeida, fora motivado por uma transação comercial.

Augusto Lopes Cançado relatou que, “(...) as onze horas da manhã mais ou menos, estando elle depuente em casa de negocio de Francisco Torquato d’Almeida, nesse momento entrou Joaquim Braz e começou a fazer o negocio, (...) trocar o selim por uma garrucha.”(p. 12).

Durante a transação Joaquim Braz recusou-se a mostrar o objeto da troca, a garrucha, a Torquato. Joaquim Sebastião de Almeida conta que em dez de outubro estava na casa de negócio de Francisco Torquato, quando chegara Joaquim Braz para realizar uma “permuta de selim por garrucha”, combinado na véspera por ambos. “(...) Exigindo Torquato a garrucha para esperimentar, Joaquim, recusando dar-lhe a por se acharem no negocio outras pessoas, veio afinal a entregar-lhe em vista da insistência [de Torquato](...).”(p.15).

Tendo a garrucha em mãos, retiradas as balas, partiu Torquato para fora do seu comércio decidido a testá-la. Segundo Augusto Lopes Cançado, após insistente pedido de Torquato, Joaquim Braz “(...) entregou-a a Francisco Valeriano, e eu depoente tirei as duas ballas, então Torquato querendo esperimenta-la sahio para a rua pedindo a Joaquim Sebastião umas ballas que estavão em cima da mesa e com estas dando dous tiros em uma taboa.(...)”(p.8v).

Após experimentar a arma, como desejava, Torquato retornou à casa de comércio entregando-a a Joaquim Braz. Ao carregar novamente a garrucha, uma das cápsulas detonou atingindo Torquato no lado esquerdo do peito. Assim narrou Joaquim Sebastião de Almeida: “(...) Esperimentada a arma e de novo entregue a Joaquim e no momento em que de novo enfiava as duas capsulas uma dellas detona-se indo o projetil auvejar a Torquato, ferindo-o na região mamaria superior.”(p.15v).

Sobre o que ocorreu após o incidente, os depoimentos estão desencontrados. De acordo com Francisco Lopes Cançado: “(...) estando em casa de seu irmão Valeriano Lopes Cançado e ouvindo gritos e choros pelos lados da casa de Torquato de Almeida chegou a porta para verificar e vendo que continuava o pânico e que o offendido tendo a mão sobre o peito subia o bêco que vem da Vargem para o largo e nesse momento chegou o Doutor Valladares que conduzira-o para o interior da casa onde teve a testemunha opportunidade de vêr a offensa apezar de lhe ter dito antes o próprio Torquato elle não estava offendido.(...)”(p. 13v).

Valeriano Lopes Cançado contou que soube por uma pessoa da sua família que, “(...) Torquato de Almeida estava offendido por um tiro; sahindo encontrou Torquato na porta de casa com a mão no peito e pedio a testemunha que fosse chamar ao doutor Candido o que fês prontamente(...)”(p. 14 e 14v).

Por outro lado, todas as testemunhas e Torquato foram unânimes em afirmar que Joaquim Braz não teve culpa, tendo sido uma fatalidade o que ocorrera.

Em um trecho do depoimento de Augusto Lopes Cançado, ele afirma ter presenciado que Joaquim Braz estava “(...) extremamente surpreendido [sic] chorava dizendo ao offendido que não era elle culpado e que semelhante facto tinha como origem a fatalidade.(...)”. Mais a frente completa: “(...) Estas mesmas frazes foram pronunciadas pelo offendido que sempre afirmava a inocência de seu offensor(...)”(p. 12v).

Francisco Lopes Cançado assegurou que não “(...) sabe nada que disabone o comportamento do denunciado e afirma que tanto o offendido como sua família são os primeiros apresentarem-o [sic] como inculpável.”(p. 13v e 14).

Continuando, diz Valeriano Lopes Cançado saber que, “(...) entre offensor e offendido e familia deste existia amisade, (...) ainda hoje sem alteração.”. Disse ainda, “(...) que no dia do delicto, vío o denunciado em casa do offendido chorando e ignora que houvesse qualquer motivo para assim propositalmente proceder o denunciado.(...)”(p. 14v).

Chegamos ao fim dos depoimentos. Sabemos, através de leitura de outras páginas do processo, que houve um pedido de prisão para o réu e, que o mesmo se apresentou à polícia posteriormente, e foi detido. O juiz da época, Doutor Pedro Nestor de Salles e Silva, presidiu o julgamento e pronunciou a sentença. Para defender o réu foi nomeado José da Costa Guimarães Sobrinho.

Pela leitura da página 24 do processo-crime em epígrafe, sabemos que foi instaurado um processo e houve um pedido de prisão para o réu. Porém, Joaquim Braz entregou-se deliberadamente à polícia, em 28 de janeiro de 1901, conforme trecho destacado: “Certifico que o reo Joaquim Mattos, (...) entrou hoje voluntariamente para a cadéa, onde ficou prezo, a fim de responder ao jury na próxima sessão que se acha convocada para o dia 28 do corrente mês [janeiro]” (p.24).

O réu recebeu uma cópia do libelo, através do senhor Moysés da Costa Guimarães, juntamente com seu curador (espécie de tutor ou advogado), senhor José da Costa Guimarães Sobrinho, notificando-os do andamento do processo.

Emitidos os mandatos intimando as testemunhas e sorteados os cidadãos, em número de trinta e dois, para comporem o júri, marcou-se para o dia 29 de janeiro e dias seguintes, o julgamento do réu Joaquim Braz, pelo crime contra Torquato.

Através da leitura da ata da sessão, assinada pelo juiz e o promotor, Fernando Otávio da Cunha Xavier, podemos tentar reconstituir o julgamento.

Presidindo a sessão estava o senhor Doutor Pedro Nestor de Salles e Silva, juiz de direito na época e o promotor público. Francisco José de Araújo, oficial de justiça juramentado, serviu como porteiro. Dos trinta e dois cidadãos sorteados, trinta estavam presentes; dentre os presentes foram escolhidos oito, a saber: Ricardo José Marinho; Adelino Cecílio dos Santos; Virgilio Domingues Maia; Joaquim Pereira Duarte; João Jacintho de Mendonça Sobrinho; José Henriques Pereira Campos Filho; Francisco Pereira Costa e José Feliciano Carlos. Foram rejeitados pelo réu: João Dornas dos Santos; Olympio d’Abreu e Silva e Joaquim Candido Louzada. Rejeitados pelo promotor: Doutor Antônio Benedito Valadares Ribeiro. Também foram excluídos Francisco Justino Ribeiro, “(...) por ser genro do promotor de justiça e Antônio Francisco de Mendonça por ser irmão do quinto jurado”(p. 30 verso).

Após a escolha dos componentes do júri, prosseguiu-se com o julgamento; o juiz interrogou o réu, foi lido todo o processo e o promotor público apresentou a acusação, baseado nos artigos da lei vigente, desde 1892, fundamentando a culpabilidade do réu. Seguiu-se a interpelação das testemunhas – já mencionadas em artigos anteriormente publicados. O senhor José da Costa Guimarães Sobrinho procedeu à defesa, alegando ausência de intenção de se cometer o ato criminoso, sendo o ocorrido uma fatalidade. O juiz – logo que terminaram os depoimentos e interpelações – dirigindo-se ao júri argüiu-lhes se os dados apresentados eram suficientes para emitirem o julgamento. Como afirmaram positivamente, eles foram conduzidos à sala secreta para julgar a causa.

Após algum tempo, os jurados deixaram a sala secreta e apresentaram o documento contendo o que fora decidido, anteriormente, entre eles. Pode-se ler, nesse documento, que os jurados responderam a uma espécie de questionário, onde escreveram o que concluíram das provas apresentadas. Por unanimidade, conforme seu julgamento, o réu praticara o crime, prescrito no “§1º do artigo 42”, porém sem nenhuma intenção de praticá-lo. Ainda, por unanimidade, na última questão, o júri reconhece a fatalidade do incidente em decorrência de um ato, que julgaram lícito (p. 40).

Abaixo transcrevemos parte da sentença do juiz, Doutor Pedro Nestor de Salles e Silva, baseada na decisão do júri: “De conformidade com a decisão do jury absolvendo o reo Joaquim de Souza Mattos da acusação que lhe foi imputada(...)”(p. 40). Pede que emitam o alvará de soltura para o réu. Sentença pronunciada e escrita em 30 de janeiro de 1901.

Os dados apresentados neste artigo, juntamente com os outros dois publicados anteriormente e já mencionados acima, referem-se à leitura e interpretação de um documento de processo-crime do último ano do século XIX e refletem apenas uma visão do fato, limitando-se a uma análise apenas. Infinitas visões e interpretações podem “brotar” das várias leituras que se pode fazer do documento em epígrafe. Esse é o verdadeiro fascínio do estudo historiográfico: não existe uma narrativa pronta e definitiva do fato; o que existe, são interpretações.

(*)Foto: Torquato alves de Almeida (atrás, no centro) com a esposa D. Onésima e parentes. Acervo: Museu Histórico de Pará de Minas.
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O texto acima refere-se a três artigos, de minha autoria, publicados na coluna Resgate histórico de responsabilidade do Grupo Acervo Documental Mesopotâmia Mineira, publicação semanal: Jornal Diário.

Acervo Documental Mesopotâmia Mineira: Geraldo F. Fonte Boa (Coordenador do Projeto) e-mail: fonte@nwnet.com.br, Flávio M. S. (Coord. Curso de História FAPAM. HP: http://www.nwm.com.br/fms), Ana Maria Campos (MUSPAM); Professores formados em História na FAPAM: Alaércio Delfino, Geraldo Rodrigues e Joandre Oliveira Melo. Site FAPAM: www.fapam.edu.br. Nosso blog.: http://mesopotamiamineira.blog.terra.com.br.


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