domingo, 8 de abril de 2012

Fragmentos VII

Ah, o brasileiro mata e morre por uma frase.

Há um velho e obtuso preconceito segundo o qual todas as frases querem dizer alguma coisa. Nem sempre. Certas frases vivem, precisamente, de mistério e de suspense. A nitidez seria fatal. Escrevi isso para chegar a uma verdade eterna, ou seja: a pequena causa, ou o motivo irrelevante, pode produzir um grande efeito.

Não sei se vocês acompanharam, pelos jornais, o epsódio do paletó. Era em Brasília. E para lá embarcou uma comissão dos "Cem mil" que ia avistar-se com o presidente Costa e Silva. Um dos seus membros era meu amigo, que pôs o seu melhor terno e a sua melhor gravata. A comissão ia resolver problemas de alta transcendência, ia propor nobilíssimas e urgentíssimas reinvidicações.

E lá chegam os intelectuais e estudantes. Entra a comissão e vem o assessor da presidência espavorido. Os dois estudantes não têm paletó, nem gravata. E, como o protocolo exigia uma coisa e outra, era preciso que ambos se compusessem.

Pode, não pode, e criou-se o impasse. O diabo é que o problema era aparentemente insolúvel. Felizmente, surgiu a ideia:
-- dois contínuos emprestariam tanto o paletó como a gravata. Mas os estudantes não aceitaram. Absolutamente, queriam ser recebido sem paletó e sem gravata. Outros assessores vieram. Discute daqui, dali. Apelos patéticos.

Vejam como um nada pode mudar a direção da História. De repente, os estudantes presos, o Calabouço, as Reformas, tudo, tudo passou para um plano secundário ou nulo. Os dois estudantes faziam pé firme. O paletó e a gravata eram agora "O inimigo". Vesti-los seria a abjeção suprema, a humilhação total, a derrota irreversível.

O rádio e a TV pediam paletós e gravatas, assim como quem pede remédios salvadores. Paletós de luxo e gravatas de Paris, de Londres, de Berlim, foram doados. Mas os dois permaneciam inexpugnáveis. Gravata, não! Paletó jamais! O Poder os esperava e, dócil ao protocolo, de gravta e paletó.

Se um de nós por lá aparecesse, haveria de imaginar que tudo estava resolvido, e tinham sido atendidas as reivindicações específicas da classe. Claro! Uma vez que se discutiam paletós e gravatas, como se aquilo fosse uma assembleia acadêmica de alfaiates, a "Grande Causa" estava vitoriosa. Libertados os estudantes, aberto, e de para em par, o Calabouço, e substituída toda a estrutura do ensino. E continuava a "Resistência", muito mais épica e muito mais obstinada do que a francesa na guerra. Até que, de repente, voi do alto a ordem: --"Manda entrar, mesmo sem paletó, mesmo sem gravata." Era a vitória. E, por um momento, os presentes tiveram a vontade de cantar o Hino Nacional.
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RODRIGUES, Nelson. A frase. In.: A cabra vadia - novas confissões. Rio de Janeiro: Agir, 2007, p. 267-70 (com adaptações) Caderno Manhã concurso à carreira de diplomata IRB.

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