quarta-feira, 4 de novembro de 2009

O Homem que medita é um animal depravado?

Em certo momento Rousseau afirmou, em seu discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre homens, que o homem que medita é um animal depravado. É um desterrado da sua natureza primeira, natureza pura a qual foi-lhe concedida pelo criador. Abaixo, excertos da obra para meditarmos sobre a afirmação de Rousseau.

(...) qual o motivo que poderia levar o outro a atendê-lo; ou, finalmente neste último caso, como poderiam estabelecer condições entre si. Sei que incessantemente nos repetem que nada teria sido tão miserável quanto o homem nesse estado.(...) Mas, se compreendo bem o termo "miserável", é ele uma palavra sem sentido algum ou que só significa uma privação dolorosa e sofrimento do corpo ou da alma. Ora, desejaria que me explicassem qual poderia ser o gênero de miséria de um ser livre cujo coração está em paz e o corpo com saúde. Pergunto qual das duas - a vida civil ou a natural - é mais sucetível de tornar-se insuportável àqueles que a fruem. À nossa volta, vemos quase somente pessoas que se lamentam de sua existência, inúmeras até que dela se privam assim que podem, e o conjunto das leis divinas e humanas mal basta para deter essa desordem. Pergunto se algum dia se ouviu dizer que um selvagem [atente para a palavra "selvagem" aqui não está empregada no contexto correto, tal qual Rousseau deseja apresentar. Presume-se, assim que o selvagem já está a caminho da degeneração por possuir uma cultura. Portanto o "selvagem" deve ser entendido como "primitivo"] em liberdade pensou em lamentar-se da vida e em querer morrer. Que se julgue, pois, com menos orgulho de que lado está a verdadeira miséria. Pelo contrário, nada seria tão miserável quanto um selvagem ofuscado por luzes, atormentado por paixões e raciocinando sobre um estado diferente do seu. Deveu-se a uma providência bastante sábia o fato de as faculdades, que ele apenas possuía potencialmente, só poderem desenvolver-se nas ocasiões de se exercerem, a fim de que não se tornassem supérfluas e onerosas antes do tempo, nem tardias e inúteis ao aparecer a necessidade. O homem encontrava unicamente no instinto todo o necessário para viver no estado de natureza; numa razão cultivada só encontra aquilo de que necessita para viver em sociedade.
Parece, a princípio, que os homens nesse estado de natureza não havendo entre eles espécie alguma de relação moral ou de deveres comuns, não poderiam ser nem bons nem maus ou possuir vícios e virtudes. (...) Sem nos afastarmos do senso comum, é oportuno suspender o julgamento que poderíamos fazer de uma tal situação e desconfiar de nossos preconceitos até que, de balança na mão, se tenha examinado se há mais virtudes do que vícios entre os homens civilizados; ou se suas virtudes são mais proveitosas do que funestos seus vícios, ou se o progresso de seus conhecimentos constitui compensação suficiente dos males que se causam mutuamente à medida que se instruem sobre o bem que deveriam dispensar-se; ou se não estariam, na melhor das hipóteses, numa situação mais feliz não tendo nem mal a temer nem bem a esperar de ninguém, ao invés de ter-se submetido a uma dependência universal e obrigar-se a receber tudo daqueles que nada se obrigam a lhes dar. (ROUSSEAU. Coleção Os pensadores, 1999, pp. 74-75)


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Referências Bibliográficas.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. Vol II. trad. Lourdes Santos Machado. Coleção Os pensadores. São Paulo: ed. Nova Cultural: 1999. pp. 74-75)

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