quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Gaiolas e homens



Na última noite, adormeci com o meu L’imagination – um pequeno, mas interessante tratado de Jean-Paul Sartre sobre os sistemas metafísicos e a racionalidade: Descartes, a filosofia fenomenológica de Husserl e Bergson, analisados pelo existencialista. Não havia lua e desditosa avançava enquanto eu, adormecido, deixava o pequeno livro cair de minhas mãos. Rendi-me finalmente ao sono. Contudo, o movimento da noite não cessou enquanto dormia inerte naquela cama.
Avançada as horas, a noite envelhecida, como a senhora do cabaré que havia há alguns metros de meu quarto, fortes ventos começaram a açoitar minha janela; no entanto, ela resistia bravamente às investidas da ventania, como o escudo de Leônidas a rechaçar os golpes das espadas dos guerreiros persas. A primavera é assim, às vezes, nos engana com sua calmaria; e, em outras, nos amedronta com as indomáveis forças da natureza a movimentar a atmosfera à sua vontade. Juntara-se à algazarra uma chuva forte; pingos grossos estilhaçavam-se contra o metal da janela do quarto, um som quase harmonioso era arrancado deste embate. Acordei do meu sono em meio aquele tormento da natureza, com o burburinho do vento e da chuva.
O vento, no entanto, cedia lentamente à viscosidade da chuva, aos poucos tornara-se uma brisa fresca emprestando, como um amante, o seu calor às gotas que caiam do céu a cântaros, porém, já mais brandas e frias.
Embalado pelo som e envolvido pelo frescor que agora reinava, voltei a dormir calma e profundamente. Nada me ocorreu, dormia profundamente; até que o arrogante som do despertador quebrou o silêncio da aurora, eram seis da manhã, hora de levantar-me.
Como me sentia? Antes, leve e tranquilo, agora agitado e dolorido. Aquele desprezível aparelho arrancou-me do sossegado reino de hipnos e trouxera-me à crueza da realidade.
Muitos agradeceriam este momento, justificá-lo-iam com a frase de que estavam vivos para mais um dia. Mas, para mim, era uma sensação mais ou menos aguda, um misto de desgosto e fadiga.
À medida que fui me movimentando, percebi que a chuva parara e deixara uma brisa fresca, um hálito de terra molhada, mesclado ao perfume primaveril; uma doce mistura de aromas.
Sai por volta das sete, atrasado como sempre; o dia estava belo, límpido, magnífico, mas não poderia desfrutá-lo. Caminhava apressadamente, esperava não chegar atrasado novamente. Mais um atraso e não me sobraria mais a vaga que ocupo em uma das salas de um grande edifício no centro da cidade. Neste edifício está a sede de uma grande empresa, onde trabalho há 30 anos.
O dia amadurece lindamente. Súbito, o elevador já está com seus braços abertos, como Hades, recolhendo suas últimas vítimas; uma legião de pobres coitados, com eu, aglomerávamos às portas destes tipos, uma espécie de alçapões. Eram como portais para a prisão para onde iríamos, uma legião de homens e mulheres e eu, ainda entorpecidos pelo abraço de hipnos.
Subo até o meu andar. É um belo andar, minha mesa fica próxima à janela. Da minha janela posso ver outros como eu; paressem-me mais como pássaros aprisionados em seus escritórios, todos atarefados, e os escritórios lembram-me gaiolas.
Lembro-me de estar em uma destas, há pelo menos 25 anos, mas a sentença a cumprir ainda é longa. Alguns de nós inevitavelmente ficaremos pelo caminho, sem conhecermos a liberdade, sem desfrutar da terra molhada após uma noite de chuva, sem sentir o sol queimar nossas faces. Repito, comigo mesmo, todos os dias: - pobres homens.
Certa vez, conversava com uma senhora muito pobre, mas muito sábia – certamente a chuva que presenciei tranquilo na minha cama na noite anterior, ter-lhe-ia causado grandes incômodos –, e ela me dizia muito determinada: - O homem precisa de muito pouco para viver! Exclamava a sábia senhora.
Recordei aquelas palavras e perguntei a mim mesmo: - Serão estas gaiolas o quão pouco que precisamos para viver? Sem demora recordei-me o velho Rousseau: - “O homem nasceu livre e em todo lugar encontra-se a ferros(...)”.

Um comentário:

  1. Lembro de ter lido, há muito tempo, um texto (muito bom) do Rubem Alves sobre gaiolas e homens... Sim, é como se vivêssemos em gaiolas, de diversos tipos, em diversas situações (no trabalho, por exemplo, estamos engaiolados). O pior de tudo é que nos acostumamos a essas gaiolas e, se nos livramos delas momentaneamente, é comum nos sentirmos perdidos. Lembro que, no texto do Rubem, ele citou o exemplo de quem se desacostuma a tirar férias e se vê perdido se acontece de tirá-las.
    Esse assunto é muito bom, Joandre!
    Um abraço!

    ResponderExcluir

Agradeço pelo seu comentário.