domingo, 7 de setembro de 2008

Apologia ao dia da Independência


Por Joandre Oliveira Melo(*)

Pobre Homem, de todas as criaturas que vagam e vegetam sobre a face da Terra ele é, talvez, o mais infeliz; não goza de sua liberdade, não pode alçar vôo como o condor, ou disparar como o guepardo, nem nadar como o golfinho. Não pode deitar-se no campo e apreciar as belezas do mundo que o rodeia. Pobre Homem, é capaz de conhecer tudo que o cerca e tem consciência de si mesmo. Diferentemente dos outros seres que não têm consciência de si nem do que os cerca, o Homem sabe que está no mundo, compreende os acontecimentos e, por saber tudo isto, sofre. Ao nascer é tão frágil que nem é capaz de sobreviver por si mesmo, como as outras criaturas. É o mais vil das delas, vive a mais ignóbil das existências, nem a liberdade é-lhe concedida. Logo que nasce é jogado no mundo dos outros, dos seus ancestrais, introduzido na história dos Homens, que não é a dele, mas que o obrigará a matar ou morrer.

Os laços de amor e solidariedade logo são substituídos por uma ética subjetiva, um éter fugaz ao qual os Homens se submetem; quebram-se, neste momento, as leis da natureza, da manada, do clã: nasce o contrato social.

O Homem, no entanto, dentre todas as criaturas é o mais cruel, mesmo sendo capaz de pensar, de refletir e de compreender. Rousseau afirma que o Homem, enquanto ser pensante, degenerou-se; quanto mais pensante, mais degenerado se torna. Pascal, por outro lado, dizia que o Homem é mais nobre do que o Universo, pois, o Universo, implacável tirano, o matará; entretanto, o último não sabe que mata, mas o Homem sabe que morre.

Pobre Homem, pequeno, nascido para uma existência subterrânea, caminhando titubeante para a luz. No alvorecer da civilização o Homem, aquele que pensa, logo cercou seu pedaço de terra e passou a dizer que era sua propriedade. Destarte, nasceram as nações que agruparam alguns e segregaram tantos. Tantos irmãos, também Homens e por conseguinte donos da terra. Primeiro, apartaram-se aqueles que não foram capazes ou que não lhes fora permitido cercar suas terras, porque alguns poucos e avaros Homens já a haviam dividido entre si. Passaram eles, então, a vagar sem destino sobre as terras, que eram suas também, por direito, e foram-lhes arrancadas, sujeitando-se aos mais abjetos trabalhos – em nome de sua sobrevivência – para cultivar as propriedades de alguns poucos.

Adiante, apartaram pela cor; desafortunados os negros que são pobres e negros. Pobre do Homem “selvagem” das tribos do Novo Mundo, massacrados pela ambição dos Homens letrados, porque não têm história, nem nação, andam nus e não conhecem a Deus e veneram a natureza.

E assim passaram-se os séculos, os milênios e as legiões de Homens, apartados em nações, floresceram, diversificaram-se. Recrudesceram-se as fronteiras e nasceu o mercado. Foi necessário alterar as regras sociais para alimentar as fornalhas da produção, sustentar e opor os impérios...

O mercado a todos subjugou, alterou as regras da Humanidade, matou Deus e acirrou a competição e a ganância entre os Homens. E os corpos dos desafortunados novamente foram usados para alimentar e sustentar as fornalhas da produção em massa.

Os Impérios, cruéis senhores, alimentando-se da degeneração do Homem, espalharam-se como uma praga pelo mundo afora, intercalando-se no poder.

Todavia, os Impérios se sustentam nas atitudes dos Homens; e os Homens precisam de algo que os anime e os incentive a viverem unidos colaborando com o todo. Em socorro de tais empresas, para criar essa “cola” que dará vida a esses monstros, vieram os Mitos. Mitos para os quais erguermos nossa veneração; alguém que possamos mirar nossas atitudes e sentirmos orgulho. Mas, como a moeda que tem dois lados, os Mitos também os têm. Rubem Alves escreve com propriedade que “(...) todo mito é perigoso, porque induz o comportamento e inibe o pensamento”. Eles não passam de Homens como nós; embora, idealizados.

Vejamos D. Pedro I, líder supremo do Brasil, ícone e expressão máxima da nossa rebeldia contra o jugo da corte portuguesa, materialização de nossos desejos de liberdade, por outro lado, ele era português e nos olhava com olhos de um fidalgo português. Não será com espanto que o vemos recomendar aos constituintes, após a proclamação da Independência, que redigiam a primeira Carta Magna do Brasil, que a fizessem digna dele. Não satisfeito com os poderes a ele assegurados, descartou-lha e instituiu, despoticamente, uma para si, criando o quarto poder: o Poder Moderador. Com ele, o Imperador poderia manipular os outros poderes e centralizar a administração.

Outro não menos importante, Duque de Caxias, comandante inconteste de nossas forças contra as armas do Paraguai, mas, olhemos o outro lado, sob seu comando, quantas vidas foram ceifadas na Guerra do Paraguai?

Enfim, como atesta Ernst Cassirer: “deveríamos definir o homem como animal symbolicum e não com animal rationale”.

Em nome desse simbolismo ufanista, criam-se heróis para arrebanhar Homens e defender as suas causas. Vejam pois, meus senhores; ao acaso os grandes heróis proveram sozinhos a grandeza de nossa nação? Foram eles que ergueram nossos edifícios, lavraram nosso chão, plantaram e colheram e abriram as estradas? Digo-lhes que não. Os verdadeiros heróis estão aqui, “embaixo”, próximos de nós, dentre nós.

Os negros escravizados, sob o estalar dos látegos dos senhores de terras, que ergueram tudo isso. Foram os trabalhadores rurais que dia após dia, em uma incansável labuta, lavraram a terra e a tornou produtiva – eles são os heróis!

Os grandes heróis estão aqui e em toda parte; vejam nossos pais, que mesmo com todas as dificuldades que estão submetidos, não se curvam aos apelos da desonestidade e, com dignidade, criam seus filhos.

Portanto, os brasileiros não estão protegidos pelos baluartes da Independência, o que ocorreu, no fundo foi uma troca de elites no poder. Na verdade, abriu-se o caminho para uma dependência na qual ainda permanecemos. E os Homens precisam entender que são livres e podem escrever sua história; e a fazem diariamente, independente de um herói ou um mito em quem mirar-se. Citando Diderot, nobre filósofo francês: “nenhum homem recebeu da natureza o direito de comandar os outros. A liberdade é um presente do céu, e cada indivíduo da mesma espécie tem o direito de desfrutá-la, assim como desfruta da razão.”

Nesse dia em que comemoramos a Independência, pensamos sobre nossa origem, de onde viemos, o que nossos antepassados fizeram, por que a nossa história seguiu o rumo atual? Talvez alguns de nossos antepassados tenham sido: um “grande homem”, “um grande líder”, um mito. Mas, apenas a eles são rendidas as homenagens. Não que eles não a mereçam, é claro que as merecem. Talvez, daqui há alguns anos nós poderemos ser considerados “grandes homens” ou “grandes mulheres”, mitos para as gerações que virão. Mas, o que será daqueles (ou de nós mesmos) que não constarão nos registros da história? Talvez, o único registro que teremos será aquela certidão que relata que um dia nascemos e viemos ao mundo, ao seio da comunidade dos Homens; mas, nada fizemos, nada fomos, nem sequer lideramos um pelotão, ou escrevemos um livro. Terrível, não? Pois, digo-lhes que não. Todos nós fazemos a História, a nossa História; que até se confunde com a história de nossa Cidade, nosso Estado e nosso País.

Este texto não tem a pretensão de ser um tratado, ou um manifesto, para romper com a ordem que existe e prevalece sobre nossos destinos. Mas, levar-nos a pensar, a questionar, sobre as nossas ações, a nossa posição de luta e de resistência à submissão, ao sistema ao qual fomos compelidos a fazer parte. E, ainda, questionar as ações daqueles que se sobrepõem a tantos outros que, no mundo inteiro, trabalham e lutam pela sua sobrevivência.


(*)Joandre Oliveira Melo, 39, graduado em História, membro do Projeto Acervo Documental Mesopotâmia Mineira.
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Texto publicado na coluna "Resgate histórico" do Projeto Acervo Documental "Mesopotâmia Mineira", 01 de setembro de 2008, do jornal Diário de Pará de Minas
(*)Imagem extraída do site Wikipédia, em 07 de stembro de 2008 18:00hs, disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Imagem:Independ%C3%AAncia_ou_Morte.jpg

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