quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Ceres tesmóforas

(...) Em uma palavra: enquanto só se dedicaram a obras que um único homem podia criar, e a artes que não solicitavam o concurso de várias mãos, viveram tão livres, sadios, bons e felizes quanto o poderiam ser por sua natureza, e continuaram a gozar entre si das doçuras de um comércio independente; mas, desde o instante em que um homem sentiu necessidade do socorro de outro, desde que se percebeu ser útil a um só contar com provisões para dois, desapareceu a igualdade, introduziu-se a propriedade, o trabalho tornou-se necessário e as vastas florestas transformaram-se em campos aprazíveis que se impôs regar com o suor dos homens e nos quais logo se viu a escravidão e a miséria germinarem e crescerem com as colheitas.
(...)Da cultura de terras resultou necessariamente a sua partilha e, da propriedade, uma vez reconhecida, as primeiras regras de justiça, pois, para dar a cada um o que é seu, é preciso que cada um possua alguma coisa; além disso, começando os homens a alongar suas vistas até o futuro e tendo todos a noção de possuírem algum bem passível de perda, nenhum deixou de temer a represália doa danos que poderia causar a outrem. Essa origem mostra-se ainda mais natural, por ser impossível conceber a idéia da propriedade nascendo de algo que não a mão-de-obra, pois não se compreende como, para apropriar-se de coisas que não produziu, o homem nisso conseguiu pôr mais do que o seu trabalho. Somente o trabalho, dando ao cultivador um direito sobre o produto da terra que ele trabalhou, dá-lhe consequentemente direito sobre a gleba pelo menos até a colheita, assim sendo cada ano; por determinar tal fato uma posse contínua, transforma-se facilmente em propriedade. Quando os antigos, diz Grócio, emprestaram a Ceres o epíteto de legisladora e a uma festa celebrada em sua honra o nome tesmoforia, com isso quiseram dar a entender ter partilha das terras produzido por uma nova espécie de direito, isto é, o direito de propriedade, diverso daquele resultante da lei natural. (ROUSSEAU, Jean-Jacques. 1999, pp. 94,95-96).
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Referências

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. Vol II. trad. Lourdes Santos Machado. Coleção Os pensadores. São Paulo: ed. Nova Cultural: 1999. (pp. 94;95-96)

(*)Foto disponível em: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/b/b7/Jean-Jacques_Rousseau_%28painted_portrait%29.jpg, 11/11/2009 22:38hs

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