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E enquanto me barbeava, pensei no imundo buraco de lama do cemitério, no qual haviam baixado o desconhecido, e nos rostos avinagrados dos contrafeitos irmãos em Cristo, mas não consegui rir-me disso nem uma só vez. Ali terminava, segundo me parecia, naquele imundo buraco de lama, em meio às tolas palavras do pregador e os estúpidos gestos dos acompanhantes, no espetáculo desconsolador de todas aquelas cruzes de lápides de mtal e mármore, junto àquelas flores artificiais de arames e vidros - ali terminava não só o desconhecido, ali acabaria enterrado amanhã ou depois não só eu, diante da perplexidade e da hipocrisia dos acompanhantes, mas ainda tudo o mais, todo o nosso anseio, toda a nossa cultura, toda a nossa fé, toda a nossa alegria de viver e o nosso gosto de existir! Nosso mundo cultural era um cemitério...
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Ao mesmo tempo, pensava comigo: assim como agora me visto e saio, vou visitar o professor e troco com ele algumas frases amáveis, mais ou menos falsas, tudo isso contra a minha vontade a maioria dos homens que vivem e negociam todos os dias, todas as horas, forçadamente e sem na realidade querê-lo; fazem visitas, mantêm conversações, sentam-se durante horas inteiras em seus escritórios e fábricas, tudo à força, mecanicamente, sem vontade; tudo poderia ser realizado com a mesma perfeição por máquinas ou não se realizar; e essa mecânica eternamente continuada é o que lhes impede, assim como a mim, de exercer a crítica de sua própria vida, reconhecer e sentir sua estupidez e superficialidade, sua desesperada tristeza e solidão. E têm razão, muitíssima razão, os homens que assim vivem, que se divertem com seus brinquedinhos, que correm atrás de seus assuntos, em vez de se oporem à mecânica aflitiva e olharem desesperados o vazio, como faço eu, homem marginalizado que sou. Se às vezes desprezo e até me burlo dos homens nestas páginas, não será por isso que os culpe de minha indigência pessoal! Mas eu, que cheguei tão longe e estou à margem da vida, de onde se tomba à escuridão sem fundo, cometo uma injustiça e minto, se pretendo enganar-me e enganar os outros, como se funcionasse também para mim aquela mecânica, como se funcionasse a pertencer àquele mundo nobre e infantil do eterno jogo! (Herman Hesse, O lobo da estepe)
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Referências
HESSE, Herman. O lobo da estepe. 32 ed. Rio de Janeiro:Record, 2008. (pp. 87-88-89).
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