sábado, 3 de julho de 2010

A insustentável unidade do ser ...


Todos os homens, em sua natureza humana, embora ignorem, abrigam constelações de seres; desde hordas de demônios a legiões de arcanjos, todos convivem em um só peito. Mas, o homem burguês reluta em aceitar tal natureza, sem contudo, apartar-se dela, relevando suas múltiplas personalidades ou alimentando-as como pode; ou, alguns mais radicais, matando-as de inanição. No entanto, mesmo que seu "eu" as submeta ao jugo das religiões, dos preconceitos e da lei dos homens, elas sempre renascem do nada. É assim que são ...

O equívoco reside numa falsa analogia [diz H. Hesse]. Todo homem é uno quanto ao corpo, mas não quanto à alma.

(...)

Não devemos surpreender-nos pelo fato de que mesmo um homem tão inteligente e educado quanto harry possa tomar-se por um "lobo da estepe" e reduzir a rica e complexa imagem de sua vida a uma fórmula tão simples, tão rudimentar e primitiva. O homem não é capaz de pensar em alta escala, e mesmo o mais espiritual e altamente intelectualizado pode contemplar o mundo e a si próprio através das lentes de fórmulas enganosas e simplistas - especialmente a si próprio! Pois parece ser uma necessidade inata e imperativa de todos os homens imaginarem o próprio ser como unidade. E apesar de essa ilusão sofrer com frequencia graves contratempos e terríveis choques, ela sempre se recompõe. O juiz que se senta defronte ao criminoso e o fita no rosto, e por um instante reconhece todas as emoções, potencialidade e possibilidades do assassino em sua própria alma de juiz e ouve a voz do assassino como sendo sua, já no momento seguinte volta a ser uno e indivisível como juiz, volta a encerrar-se no invólucro do seu eu quimérico, cumpre seu dever e condena o assassino à morte. E se em algumas almas humanas, singularmente dotadas e de percepção sensível, se levanta a suspeita de sua composição múltipla, e, como ocorre aos gênios, rompem a ilusão da unidade personalística e percebem que o ser se compõe de uma pluralidade de seres como um feixe de eus, e chegam a exprimir essa ideia, então imediatamente a maioria as prende, chama a ciência em seu auxílio, diagnostica esquizofrenia e protege a humanidade para que não ouça um grito de verdade dos lábios desses infelizes. Então, para que perder aqui palavras, por que expressar coisas que todos aqueles que pensam conhecem por si mesmos, quando sua simples enunciação é uma nota de mau gosto? Assim, pois, se um homem se aventura a converter numa dualidade a pretendida unidade do eu, se não é um gênio, é em todo caso uma rara e interessante exceção. Mas na realidade não há nenhum eu, nem mesmo o mais simples, não há uma unidade, mas um mundo plural, um pequeno firmamento, um caos de formas, de matizes, de situações, de heranças e possibilidades. Cada indivíduo isolado vive sujeito a considerar esses caos como uma unidade e fala de seu eu como se fora um ente simples, bem formado, claramente definido; e a todos os homens, mesmo aos mais eminentes, esse rude engano parece uma necessidade, uma exigência da vida, como o respirar e o comer.(Hermann Hesse, o lobo da estepe, pp. 68-69)
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Referências:
HESSE, Hermann. O lobo da estepe. ed. 32ª. Rio de Janeiro: Record, 2008.
(*) Imagem de Herman Hesse disponível em: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/c/c1/Hermann_Hesse_1927_Photo_Gret_Widmann.jpg, 03/07/2010 15:46hs.

2 comentários:

  1. Depois de ouvir a entrevista que Clarice Lispector deu ao jornalista Julio Lerner em 1977, em que ela descreveu o impacto que a leitura de "O Lobo da Estepe" teve sobre ela, corri atrás desse livro, encontrei uma edição de bolso muito boa em BH e mergulhei com tudo nessa viagem fascinante. Muito bom!

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  2. Joandre,
    Senti-me "incomodada" ao ler este trecho de O lobo da estepe. Li este livro há mais de trinta anos. Agora, você me instigou. Vou ter que buscá-lo de novo.
    Terezinha

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