Contos da Sexta-feira da paixão
Mesmo alheio às
comemorações da paixão de Jesus Cristo, esses dias destilam cheiros de
sofrimentos pelo ar de Pará de Minas. Resgatam sentimentos de dor, reflexão e
penitência. Os dias que antecedem a sexta-feira da paixão sempre me afligiram,
desde pequeno. Uma amargura paira no ar...
Tivemos épocas mais fervorosas
anos atrás. Lembro-me com ternura e saudade das procissões, ladainhas rezadas
pelos fervorosos cristãos, que somavam suas vozes.
Naquela época, os mais velhos
dirigiam as manifestações religiosas, diziam as primeiras partes das ave-marias
e dos pai-nossos e os jovens respondiam a segunda
parte.
Dentre tantas recordações, restou-me
a dos contos das sextas-feiras da paixão. Contavam-nos, os mais velhos, que a
sexta-feira da paixão é um dia temeroso entre os católicos de Pará de Minas. Um
dia de luto e luto se cumpre com respeito, silêncio e orações. Nesta época,
segundo os antigos da região, o mau espreita-nos.
Contar-lhes-ei algumas estórias;
uma delas, inclusive, aconteceu comigo. Comecemos pela mais antiga.
Contava um tio meu,
falecido há anos, que em sua tenra idade ouvira seu avô contar o caso de
Generoso.
Generoso era homem rude,
destemido, forjado pela têmpera do sertanejo. Na lida com o gado, não havia
ninguém igual. Enfrentava o Navio, um temido touro reprodutor da fazenda. Seu
nome -- Navio --, vinha do som grave e potente do seu mugir. Parecia o rugir
dos navios a vapor anunciando sua partida. Só a cabeçorra do animal já era o
bastante para um homem conseguir carregar. Generoso, ao contrário dos outros
peões, tombava o impetuoso touro com facilidade, para o deleite das moças da
fazenda.
Generoso era também um homem
nervoso, temperamental. Gabava-se de ter furado o "bucho" de quatro
caboclos que certa vez afrontaram-no para roubar-lhe a algibeira. Contava ainda
quando bateu em dois guardas, armados, que o queriam deter
por causa de uma pequena arruaça, lá pelas bandas de Pernambuco. Generoso não
podia deixar-lhes sem uma lição.
Contava meu tio que Generoso, homem que contava seus quarenta anos, corpulento,
destemido, ria-se das estórias que meu avô contava para os peões da fazenda em
épocas da quaresma e da sexta-feira da paixão, quando tudo parava para honrarem
o morto. O vovô ditava-lhes como deveria ser o comportamento nas sextas-feiras
da paixão. Generoso ria e ainda se gabava dizendo que se “o coisa ruim”
aparecesse, ele o sapecava com o chumbo de uma pistola antiga da qual Generoso
não desgrudava. Mas, o vovô o advertia: -- Home com essas coisa num se brinca.
Mas, Generoso parecia não
conhecer o medo e nada que lhe dissessem causava-lhe temor. Depois de ouvir
algumas estórias, Generoso levantou-se, despediu de todos e foi para o seu
ranchinho afastado da casa grande. Pelo caminho, revivia na memória, as palavras
de meu avô; um riso irônico quase surgia-lhe no canto
da boca. Ora, retrucava Generoso, quem diria do seu Athayde, fazendeiro,
estudado -- tinha até estudado na escola de Dona Maricas,
professora primária do arraial --, acreditar naquelas estórias; era um
despropósito.
Chegou até o seu ranchinho, o sol
já deitava seus raios por detrás da serra, onde podia-se
ver a cerca que divisava o terreno Dr. Otto, fazendeiro, vizinho de meu avô.
Sentou-se no jirau ao lado da porta de entrada do seu ranchinho e pôs-se a
picar um pedaço de fumo que ele mesmo havia colhido,
trançado e curtido. Pretendia enrolar alguns cigarros com palha que
cuidadosamente havia cortado com seu canivete.
Enquanto preparava seus cigarros,
viu caminhando em sua direção um grande cachorro, negro como carvão, mas, tão
estropiado que causava dó. Generoso encheu-se de pena do cachorro, que veio
deitar-se aos seus pés, que adentrou o ranchinho e trouxe um pedaço de carne
seca defumada e salgada que cozia com um pouco de feijão para suas refeições.
Cortou um naco da carne e apresentou-a ao cachorro que logo agarrou todo o
pedaço e, assim, fazia com tudo que punham-lhe próximo
à boca; abocanhava com voracidade. Em um dos movimentos, ávido pelo pedaço de
carne enterrou seus dentes na carne mão de Generoso. O sangue logo brotou;
Generoso, homem "brabo", encheu-se de ódio e
em um movimento repentino levantou-se e chutou o cachorro que absorveu bem o
impacto e nem se mexeu. Generoso, irado, repetiu o chute, agora com mais força
e nada do "tição" se mover. Generoso, então, perdeu as estribeiras,
chutou o cão com toda força que tinha nas pernas e gritou: -- Sai daqui tição!
Mais uma vez o cão nem se mexeu, porém, ele fitou Generoso e uma voz rouca e
aterradora brotou das profundezas de sua garganta canídea: -- Num saio não. E
ali permaneceu.
Generoso, homem destemido
apavorou-se e sem pensar atirou-se em uma carreira desenfreada pela estrada até
desaparecer no grotão. Ninguém teve notícias de Generoso até que dois dias
depois, segundo o meu tio, fora encontrado no grotão de quatro bebendo água
como um cão. Aos poucos se recuperou e contou ao meu avô tudo que acontecera-lhe na tarde da sexta-feira da paixão, após ter
deixado a casa grande.
Do cão negro nada se sabe, pois,
nenhum dos fazendeiros vizinhos tinha animal daquela pelagem nem daquela
compleição.
Ouvi a estória atentamente, no entanto,
eu era garoto da cidade: sabia o que era superstição, fazia contas que
meu tio nem as compreendia. Podia usufruir da luz elétrica e até da TV preto e
branco de válvulas que meu pai comprara de segunda mão. Eu, menino da cidade, é
que não temeria tal conto! -- Isto é superstição tio, o vovô contou-lhe esta
estória como parte de um imaginário popular do qual ele era fruto.
Meu tio admirou-se do que eu
disse: -- "Imaginário popular", mas, que diabos é
isto?
Enquanto meu tio matutava eu
peguei a minha bola e comecei a brincar. Chutava a bola contra a parede do
barracão de ferramentas, os chutes ficaram mais rápidos e fortes e eu treinava
minha pontaria com a bola. Neste momento, fui advertido pelo meu tio sobre ser
sexta-feira da paixão e que não era dia para peraltices. -- Ora que bobagem
tio. Mas, ele retrucou: -- Vá guardar esta bola menino e ficar quieto, hoje não
é dia dessas coisas.
--Não! Disse firmemente, vou
jogar mais um pouco quero treinar a pontaria do chute. Mas, ao primeiro movimento,
após a advertência do meu tio, a bola desviou e atingiu a lâmpada junto à beira
do telhado. Ouvimos uma explosão e uma labareda desceu até o chão.
Passado o susto, verificamos que
a lâmpada estava apagada, porque havia queimado o filamento no dia anterior.
Este caso eu não sei explicar,
mas, se alguém quiser se aventurar o espaço está aberto...
EXCELENTE, JOANDRE, MUITO BOM O TEXTO, ME FEZ VOLTAR TB ÀS ESTÓRIAS DE MEUS PAIS NA SEXTA FEIRA DA PAIXÃO... PARABÉNS, ABS, ZÊ.
ResponderExcluirGostei da história do Generoso, Joandre! Bem típica da quaresma.
ResponderExcluirUm abraço!
Parabéns, Joandre.
ResponderExcluirMuito boa a sua história!
Terezinha