quarta-feira, 6 de abril de 2011

Aparência e Realidade

Bertrand Russell (1872-1970)
Haverá algum conhecimento no mundo que seja tão certo que nenhum homem razoável possa dele duvidar? Esta pergunta, que à primeira vista pode não parecer difícil, é na realidade uma das mais difíceis que se pode fazer. Quando no dermos conta dos obstáculos que se levantam a uma resposta fácil e confiante, estaremos já bem lançados no estudo da filosofia -- pois a filosofia é apenas a tentativa de responder a questões últimas deste género, não de modo descuidado e dogmático, como fazemos na vida comum e até nas ciências, mas criticamente, depois de explorar tudo o que gera perplexidades nessas perguntas, e depois de tomar consciência de toda a vagueza e confusão que subjarz às nossas ideias comuns.

Na vida quotidiana pressupomos como certas muitas coisas que, num escrutínio mais atento, se revelam tão cheias de aparentes contradições que só uma grande quantidade de pensamento nos permite saber em que podemos realmente acreditar. Na procura da certeza, é natural começar pelas nossas experiências presentes e, num certo sentido, sem dúvida que delas será derivado conhecimento. Mas qualquer afirmação sobre o que as nossas experiências imediatas nos fazem saber está muito provavelmente errada. Parece-me que esout agora sentado numa cadeira, a uma secretária de um certa forma, na qual vejo folhas de papel escritas ou impressas. Mas ao virar a cabeça vejo para lá da janela edifícios e nuvens e o sol. Acredito que o sol está a cerca de cento e cinquenta milhões de quilómetros de distância da Terra; que é um globo quente muito maior que a Terra; que, devido à rotação  da Terra, nasce todas as manhãs e continuará no futuro a fazê-lo por um período indeterminado de tempo. Acredito que se  qualquer outra pessoa normal entrar na minha sala, verá as mesmascadeiras e secretárias e livros e papéis que eu vejo, e que a secretária que vejo é a mesma que a secretária cuja pressão sinto conra o meu braço. Tudo isto parece tão evidente que nem parece valer a pena afirmá-lo, excepto para responder a um homem que duvide que eu saiba alguma coisa. Contudo, de tudo isto se pode razoavelmente duvidar e tudo exige muita discussão cuidadosa de uma forma que seja inteiramente verdadeira.

Para tornar evidentes as nossas dificuldades, concentremos a atenção na mesa. Para a visão, é oblonga, castanha e brilhante, para o tacto, é lisa e fria e dura; quando lhe bato, emite um som de madeira. Qualquer outra pessoa que veja e sinta e oiça a mesa concordará com esta descrição, de modo que poderá parecer que nenhuma dificuldade se irá levantar; mas assim que tentamos ser mais precisos começam os problemas. Apesar de eu acreditar que a mesa é "realmente" toda da mesma cor, as partes que reflectem a luz parecem muito mais brilhantes que as outras, e algumas partes parecem brancas por causa da luz reflectida. Sei que, se me deslocar, as partes que reflectem a luz serão diferentes, de modo que a distribuição manifesta de cores na mesa irá mudar. Segue-se que se várias pessoas estão a olhar para a mesa no mesmo momento, nenhuma vê exactamente a mesma distribuição de cores, pois nenhuma pode vê-la exactamente do mesmo ponto de vista, e qualquer mudança de ponto de vista provoca alguma mudança no modo como a luz é reflectida.

Para a maior parte dos efeitos práticos, estas diferenças não são importantes, mas para o pintor são de máxima importância: o pintor tem de desaprender o hábito de pensar que as coisas parecem ter a cor que o senso comum diz que "realmente" têm, e tem de adquirir o hábito de ver as coisas como parecem. Temos já aqui o princípio de uma das distinções que provocam mais problemas em filosofia -- a distinção entre "aparencia" e "realidade", entre o que parece que as coisas são e o que são. O pintor quer saber o que as coisas parecem, o homem prático e o filósofo querem saber o que são; mas o desejo do filósofo de saber isto é mais forte do que o do homem prático, e é mais importunado pelo conhecimento das dificuldades em responder à questão.
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Referências bibliográficas
RUSSELL, Bertrand. 1. Aparência e realidade. In.: Os Problemas da Filosofia. trad. Desidério Murcho, Universidade Federal de Ouro Preto. Lisboa: edições 70, 2008 pp.69-71.
(*) Imagem, bretrand Russell (1872-1970), disponível em: http://duvida-metodica.blogspot.com/2008/11/o-que-importa-em-filosofia-o-debate-das.html, 06/04/2011 22:54

Um comentário:

  1. “Haverá algum conhecimento no mundo que seja tão certo que nenhum homem razoável possa dele duvidar?” Concordo que esta seja uma pergunta muito difícil.

    No mundo em que vivemos, aparência e realidade se misturam muito. Vivemos num mundo de imagens (aparências), e como aparências podem enganar!

    Interessante ler esse excerto, pois o próximo texto da minha coluna (que já está pronto) tem a ver com aparência e realidade. Claro que de maneira não filosófica como esta aqui, pois estou longe de ser filósofa. Hehe...

    Grande abraço, Joandre!

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