quinta-feira, 31 de março de 2011

Uma pérola da literatura de Pará de Minas



Déa Miranda
Pará de Minas / MG


Ernesto

Ele se levantava todos os dias antes de o Sol nascer para ser uns dos primeiros a chegar à pista de caminhada. Para muitos, esse horário era o momento do sono mais profundo, mas ele ficava ansioso, esperando pela hora de deixar o leito. Não era nenhum jovem e, à medida que os anos caminham, com eles se vão também os instantes mais agradáveis do repouso. Fica pensando como a vida é estranha, quando o sono é melhor, não se pode desfrutá-lo como se gosta. Agora que está numa fase em que pode ser o dono do seu tempo, ele não é mais seu assíduo companheiro. E como a cama se torna incômoda quando ele não vem! Ernesto rola-se de um lado para outro e não acha posição, pois as costas já reclamam. Sente também certa dormência nas pernas. E o pior de tudo são os pensamentos. Começava a se sentir só. Aquela cama tão aquecida agora estava gélida. Era verdade que nunca compreendera bem a sua esposa, mas gostava dela, de sua companhia. Agora que ela resolvera ir morar com uma irmã que ficara viúva, ele estava percebendo o quanto lhe fazia falta. Ela se fora assim sem dar explicações. Disse apenas que ia morar com a irmã, como se fosse à esquina comprar pão. E deixara Ernesto boquiaberto e com um aperto no peito.

Enfim se levanta lentamente. Os pés tocam o chão e ele se abaixa para procurar os chinelos. Uma ligeira tontura deixa-o inerte por alguns segundos. Mexe depois a cabeça para se certificar de que o mal-estar passara. Mesmo sentindo que ainda não estava bem, caminha até o banheiro e, enquanto a água cai pelo seu rosto, fica pensando em Helena. Ela era uma pessoa um pouco apagada. Apagada, seria o termo? O que vinha a ser “apagada”? Era não ter luz, não ter brilho...Estaria sendo cruel com esta definição? Não, ela sempre fora assim. Tinha o rosto impassível, incapaz de manifestar alegria e tampouco tristeza. Qualquer assunto que ele iniciava morria com uma única palavra. Ela conseguia matar qualquer assunto com um monossílabo pronunciado entre os dentes. Era como um tiro certeiro. E depois da bala atirada, o alvo atingido, o assunto morria. Aos poucos fora se acostumando ao silêncio. Ele se transformara em seu companheiro das horas em que ele não se encontrava no trabalho. E depois que se aposentara, se transformara em sua fiel companhia. Descobrira até que ficar pensando, criando imagens... não deixava de ser agradável e ele sentia até um pouco de paz. Como se fosse uma espécie de passatempo. O silêncio não deixa de ser harmônico.

Mas uma coisa o deixa intrigado. Por que gostava tanto de Helena? Já que se acostumara ao silêncio, a sua ausência não deveria ser tão sentida assim. O amor é um sentimento estranho... Ama-se por causa de... e apesar de... Ele amava Helena por suas qualidades, mas também a amava pelos seus defeitos.

Ouviu a campainha tocar. Quem seria àquela hora da manhã? Caminhou até a porta e para sua surpresa lá estava Helena. Helena e a mala. Ernesto ficou feliz em vê-la e percebeu que ela também estava. Mas, como sempre, foi econômica nas palavras. Disse apenas que ia preparar o desjejum.
Pouco depois, o aroma agradável do café espalhou-se pela casa toda e fez Ernesto respirar melhor. Ouvia agora sons de xícaras sendo colocadas na mesa, de vasilhas sendo lavadas e tudo isso lhe fazia bem. Todos aqueles sons familiares revelavam o retorno da vida àquela casa.

Enquanto Ernesto observava a esposa executar com desenvoltura as tarefas domésticas, foi descobrindo que o calor humano não estava apenas nas palavras, nos gestos... Ele se encontrava também na mesa arrumada com carinho, no café fumegante na xícara... Ali, assentado à mesa, percebeu que nunca ouvira tantas palavras pronunciadas no silêncio de Helena.
_______________________________
Conto publicado na Antologia "Contos de Outono" - Edição 2011 - Março 2011, Disponível virtualmente em: http://www.camarabrasileira.com/out11-040.htm 30/03/2011 21:05.
O texto foi gentilmente cedido pela autora, Déa Miranda, membro da Academia de Letras de Pará de Minas.

2 comentários:

Agradeço pelo seu comentário.