segunda-feira, 2 de abril de 2012

Fragmentos III

Na academia que havia em Roma, e no palácio da sereníssima rainha de Suécia Christina Alexadra, coma assistência de muitos cardeais e monsenhores, se propôs um problema no anod de 1674 cujo argumento foi este. Se o mundo era mais digno de riso, ou de lágrimas, e qual dos dois gentios andara mais prudente, se Demócrito, que ria sempre, ou Heráclito, que sempre chorava.

Entrando pois na questão de se o mundo é mais digno de riso ou de pranto, e se à vista do mesmo mundo tem mais razão quem ri, como ria Demócrito, ou quem chora, como chorava Heráclito, eu, para defender como sou obrigado, a parte do pranto, confessarei uma coisa e direi outra. Confesso que a primeira porpriedade do racional é o risível: e digo que a maior impropriedade da razão é o riso. O riso é o final do raciona, o pranto é o uso da razão. Para confirmação desta, que julgo evidência, não quero maior prova que o mesmo mundo, nem menor prova que o mundo todo. Quem conhece verdadeiramente o mundo, precisamente há de chorar; e quem ri, ou não chora, não o conhece.

Que é este mundo, senão um mapa universal de miséria, de trabalhos, de perigos, de desgraças, de mortes à vista de um teratro imenso, tão trágico, tão funesto, tão lamentável, aonde cada reino, cada cidade e cada casa continuamente mudam a cena, aonde cada sol que nasce é um cometa, cada dia que passa um estrago, cada hora e cada instante mil infortúnios; que homem haverá (se acaso houver homem) que não chore? Se não chora, mostra que não é racional; e se ri, mostra que também são visíveis as feras.

Mas se Demócrito era um homem tão grande entre os homens e um filósofo tão sábio, e se não só via este mundo, mas tantos mundos, como ria? Poderá dizer-se que ele ria não deste nosso mundo, mas daqueles seus mundos.

E com razão, porque a matéria de que eram compostos os seus mundos imaginados, toda era de riso. É certo, porém, que ele ria neste mundo e que se ria deste mundo. Como, pois, se ria ou podia rir-se Demócrito do memso mundo ou das mesmas coisas que via e chorava Heráclito? A mim, senhores, mo parece que Demócrito não ria, mas que Demócrito e Heráclito ambos choravam, cada um ao seu modo.

Que Demócrito não risse, eu o provo. Demócrito ria sempre: logo nunca ria. A consequência parece difícil e evidente. O riso, com dizem todos os filósofos, nasce da novidade e da admiração, e cessando a novidade ou a admiração, cessa também o riso; e como Demórcito se ria dos ordinários desconcertos do mundo, o que é ordinário e se vê sempre, não pode causar admiração nem novidade; segue-se que nunca ria, rindo sempre, pois não havia matéria que motivasse o riso.

Confirma-se mais esta verdade com o motivo e intenção de Demócrito proque não pode haver riso que se não origine de causa que agrade: Tudo o que Demócrito se ria, não só lhe desagradava muito, mas queria mostrar que lhe desagradava. (...)

Não digo que seja contrário aos princípios da verdadeira filosofia e da experiência. A mesma causa quando é moderada e quando é excessiva, produz efeitos contrários: a luz moderada faz ver, a excessiva, produz efeitos contrários: (...) [assim], a dor, que não é excessiva, rompe em vozes, a excessiva emudece. Desta sorte a tristeza, se é moderada faz chorar; se é excessiva, pode fazer rir; no seu contrário temos exemplo: a alegria excessiva faz chorar e não só destila as lágrimas dos corações dedicados e brandos, mas ainda dos fortes e duros.(...)

(...)[Logo, todo o corpo chora]; Heráclito chorava com os olhos, Demócrito chorava com a  boca; o pranto dos olhos é mais fino, o da boca é mais mordaz; e este era o pranto de Demócrito. De sorte que na minha consideração, não só Heráclito, mas Demócrito, choravam, só que com a diferença de que o pranto de Heráclito era mais natural, o pranto de Demócrito mais esquisito.(...)
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Referências:
VIERA, Padre Antônio. O Pranto e o Riso ou as lágrimas de Heráclito defendidas em Roma pelo Padre Antônio Vieira contra o riso de Demócrito. In.: VERDASCA, José (org.). Sermões Escolhidos. São Paulo: Martin Claret, 2003 p.190-193.


(*) Imagem Pe. Antônio Vieira, disponível em: http://www.mundoportugues.org/uploads/imgs/Padre_Antonio_Vieira.jpg, 01.04.2012, 19:57h.

2 comentários:

  1. Que texto maravilhoso. Você é um grande escritor.

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  2. Agradeço o elogio, porém, o texto não é meu. É apenas um excerto do livro "O Sermões" textos escolhidos do Padre Antônio Vieira. A ele devemos todo o crédito.

    Joandre

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Agradeço pelo seu comentário.