O teóricos da corrente psicológica chamada Gestalt caracterizam aqueles “flashes” momentâneos quando, após um período de letargia, vem à nossa mente, repentinamente, a solução de um problema, ou uma idéia bastante clara dessa solução – não levando em consideração as inter-relações do problema no passado. Esses lampejos eles deram o nome de “Insght” palavra em inglês tradução de “Einsicht".
Pois bem, parece-me que foi um desses momentos que me acometeu quando caminhava por entre os jazigos do cemitério Santo Antônio. Afluíam em minha mente pensamentos com relação à morte. A nefasta senhora que vem a ceifar a vida dos viventes. Esta é a visão contemporânea da morte. Mas, nem sempre foi assim. O confronto com a morte manifestou comportamentos diferentes no decorrer da História humana. O notável sociólogo e filósofo francês, Edgar Morin, relata em seu livro “O enigma do Homem”, que os túmulos mais antigos que se conhece são dos homens de Neanderthal, em torno de 40 mil anos. Neles há sinais de ritos fúnebres – vestígios de canibalismo e foram encontrados, junto ao corpo, despojos do falecido – que sugerem a consciência de uma continuidade da “vida” após a morte.
Na obra “A Cidade Antiga”, Fustel de Coulanges argumenta que desde a noite dos tempos os antigos povos indo-europeus acreditavam que a morte era uma passagem para uma segunda existência; no entanto, na visão destes povos antigos, que povoaram a Magna Grécia e Ásia menor, o “espírito” viveria eternamente “encerrado” no subsolo e vagariam eternamente nesse limbo, ou assombrariam os vivos, caso não lhes fossem ofertados alimentos e bebidas. Esse suplício eterno só se aplacaria com as oferendas dos seus descendentes vivos que deveriam oferecer-lhes libações para saciar-lhes os desejos (fome e sede) e pudessem viver felizes debaixo da terra. O primogênito, sempre o homem, presidiria o culto que era uma festividade religiosa particular.
Os filósofos pré-socráticos, assim chamados por precederem a Sócrates (470-
Os egípcios são, sem dúvida, insuperáveis no culto aos mortos. Erigiram colossais monumentos que chegaram até nós e são conhecidas como as pirâmides.
O cristianismo mudou radicalmente a visão da morte para a humanidade. A doutrina cristã que prega a existência de uma vida eterna após a morte é compartilhada por outras religiões e seitas salvíficas, apesar dessa crença na alma ser anterior ao Cristianismo. O Orfismo, como é conhecido, e acredita-se inspirado no pensamento de Orfeu, já pregava a natureza dual do homem (corpo e alma) entre os séculos VII e VI a.C.. A alma anima o corpo material, empresta-lhe o vigor, a destreza, a inteligência, a consciência. Com o desaparecimento do corpo, através da morte, a alma imortal se liberta e retorna a Deus, à qual pertence, para compartilhar a sua glória. Contudo, há um preço para a imortalidade que é cobrado em vida, através de uma ilibada conduta ditada pelos padrões éticos impostos por essas religiões.
Logo, para se estar tão perto de Deus era preciso morrer; destarte a morte, para as pessoas até o século XIX, revestia-se de uma áurea sagrada. Felizes daqueles que foram compartilhar do gozo eterno e deixaram esse vale de lágrimas. Entretanto, existe a possibilidade de se passar para a eternidade sem ter observado as regras de conduta, mas, dessa forma sofreriam os castigos eternamente. O apego às coisas materiais: dinheiro, luxúria, poder, inveja e os prazeres do sexo, seriam algumas dessas violações. Para se redimir e encontrar a paz eterna, como última vontade, as pessoas pediam para que fossem enterrados em solo sagrado, dentre outros pedidos. Solo sagrado era no interior das igrejas. Principalmente no século XVIII, as pessoas de posses eram enterradas dentro das igrejas, e quanto mais abastadas, mais próximas ficavam, suas tumbas, do altar. Era, ainda, solicitado que se rezassem uma miríade missas por sua alma.
No texto da historiadora Cláudia Rodrigues, “Nossa companheira, a morte”, ela nos conta que a morte era festejada e o funeral era como um espetáculo. Nem mesmo o cheiro dos mortos, enterrados nas igrejas, afastava os vivos dos cultos.
Em nossas pesquisas no acervo documental Mesopotâmia Mineira, do século XIX, confrontamo-nos com esse sentimento a todo o momento. Vários documentos, estão acompanhados de testamentos que são verdadeiras confissões de fé a determinada ordem ou santo. Em um testamento, uma senhora que faleceu no final do século XIX, pede que seja enterrada com o hábito de São Francisco, santo de sua devoção
Em outro testamento, o senhor Manoel Teixeira Duarte, morto em 1881, declara (...) que sempre segui a religião Catholica Apostolica Romana e nella pretendo morrer, que sou irmão do santíssimo coração de Jesus e do Santissimo Sacramento. (p. 3 frente) Adiante pede um enterro simples, um caixão com tampa e sobre o peito o escapulário do Santíssimo Sacramento. Que seja rezado missa de corpo presente e oito em meses seguidos.
O mais interessante, no entanto, é um discurso de defesa encontrado no documento: 6022, maço 65, “Autuação de arbitramento” do ano de 1881. No discurso, em defesa dos réus, que estavam sendo processados por negarem-se a pagar uma dívida do falecido, que os havia constituído como herdeiros; em determinado momento, o advogado refere-se à morte através da palavra “reinado”: “(...) como fosse o de 8 de 7bro [sic] de 1880 por ocazião do reinado”(p. 16 frente). O termo “reinado” empregado, até mesmo no jargão formal, pode expressar, na época, que aquele homem havia passado na terra e agora era como se tivesse adquirido as qualidades espirituais que somente os seres divinos poderiam possuir.
Através dos documentos e obras citadas, a visão da morte se transforma a medida que mudam-se o contexto, a mentalidade e a forma de se relacionar.
Hoje em dia ocorre o que Max Weber (1864-1920) chama de “desencantamento do mundo”; a técnica e a ciência tomaram o lugar das coisas místicas superando-as e pôs abaixo um mundo de medos, de submissão no qual o homem estava ligado à sua verdadeira natureza.
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Artigo publicado, coluna Resgate histórico no Jornal Diário em 08/10/2007.
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