sábado, 8 de dezembro de 2012

Generosidade ou interesse? Análise da relação entre senhores e escravos em Pará de Minas, no século XIX

Edward Gibbon em sua obra “The decline and fall of the Roman empire”, nos adverte sobre aquela que talvez seja a mais vil de todas as paixões e apetites humanos: o desejo de poder. Por ele, um homem exige a submissão de uma multidão de outros homens. (p.35)
A escravidão, talvez, seja um exemplo de tais paixões. A submissão do homem a outro homem é, sem dúvida, a mais abominável forma de relação entre seres humanos. Diderot, filósofo Iluminista do século XVIII, protestou dizendo que nenhum homem deveria submeter-se ao outro, por que nenhum deles recebeu da natureza o direito de comandar outros.
Entretanto, o homem teima em subjugar o outro de sua espécie. Desde a noite dos tempos, muito antes de Homero escrever suas epopéias, o homem se serve do outro para a sua satisfação; exércitos e bandos armados pilhavam e saqueavam para aprisionar seus semelhantes, consumindo-os como as velas que se aniquilam para produzir luz.
Toda essa miséria humana nos foi legada. Grande parte de tudo o que temos no Brasil hoje é, de alguma forma, resultado de uma intensa exploração de uma elite sobre o trabalho dos negros que vieram para o Brasil, capturados como escravos. De todas as maneiras, os negros foram perseguidos, dominados, arrancados de suas terras e obrigados a trabalhar dia após dia de sua sofrida existência.
No Brasil, como assinala Gilberto Freyre em sua obra “Casa Grande e Senzala”, apesar de não render aos negros o devido valor, pelo contrário enaltecendo a capacidade dos Portugueses de misturar-se “(...) gostosamente com mulheres de cor logo ao primeiro contato multiplicando-se em filhos mestiços (...)” (p.70) conseguindo firmar-se nestas terras vastíssimas. Apesar de serem submetidos aos mesmos maus tratos como em outras partes da América, o processo escravista ocorreu, no Brasil, de forma mais “mole”, como quer Gilberto Freyre. Na maioria das vezes foi uma relação íntima com direito até mesmo a heranças.
Este foi o caso que encontramos no documento 2490, maço 47, testamento do finado Tenente Coronel Manoel Teixeira Duarte, falecido no ano de 1881, na cidade do Para (Hoje Pará de Minas). Esse processo encontra-se no acervo documental do Projeto “Mesopotâmia Mineira”. Como sua última vontade, o coronel registra, em testamento, no ano de 1879, o desejo de deixar seus bens – haja vista, não havia produzido sua prole não tendo herdeiros diretos e sendo sua esposa falecida – para seus três escravos e concede-lhes, ainda, a alforria.
Assim está no testamento: “Eu Manoel Teixeira Duarte achando-me são e em meu perfeito juizo e claro entendimento; porém, de avançada idade resolvi(...) que meus escravos ficão por minha morte completamente forros e constituo por meus herdeiros a escrava Francisca, Sabino e Cândida, os quais, os que recomendo que em todos os seus negócios consultem sempre a meu testamenteiro [no caso Francisco Torquato d’Almeida, p.07] aquém recomendo para vellar sobre todos os interesses dos ditos escravos(...)”(p.2-4).
Uma considerável herança fora legada aos escravos: Sabino, Francisca e Cândida. Principalmente, considerando que o escravo era uma posse (coisa) e não uma pessoa, nesta época. Dentre os bens deixados que somam, juntos, mais de cinco contos de reis estão: relógios, cadeiras, catres (camas), colherinhas de prata, transcelim de ouro (correntinha suporte de relógio de bolso), oitocentos e noventa gramas de prata em obra (presume-se, através da “prata em obra” que o inventariado confeccionava utensílios de prata), tachos, etc. Mas, o que chama a atenção, junto aos bens está relacionado uma casa no largo da cadeia avaliada por um conto e trezentos mil réis. Também, “Huma caza de sobrado, no largo da matriz, com cômodo para negocio, pratilleiras, quintal plantado de arvoredos, e todo murado, uma cuberta, paiol, óculo d’agua, caza de tenda [provável oficina de trabalhos de fundição do finado], e um quarto servido com uma porta para o terreiro avaliado tudo por quatro contos e cem mil reis(...)” (p.16-17).
Como vimos, parece que o senhor Manoel Teixeira Duarte, movido, talvez, por um sentimento altruísta de praticar a benevolência, no final de sua vida, legou aos seus escravos uma boa recompensa, conforme descrito no inventário (não significa que os bens ficarão pelo valor relatado ou, mesmo, estejam livres de qualquer alienação e não está contemplado as despesas). Este tipo de comportamento não é encontrado em outros países como os da América do Norte, por exemplo, onde a escravidão foi bem mais “dura”.
Como afirmara Benjamin Franklin – intelectual Norte-Americano, considerado um dos pais da independência dos Estados Unidos – “Não será da benevolência do padeiro, do açougueiro e do cervejeiro que teremos nosso jantar hoje.”
Destarte, será que os brasileiros que agiram como o senhor Manoel Teixeira Duarte, o fizeram por generosidade ou por interesse?
Não pudemos localizar, entretanto, no decorrer do processo, as páginas que demonstram a partilha e efetiva posse dos bens pelos beneficiários. Contudo, isso não invalida a atitude do senhor Manoel Teixeira Duarte que exemplifica a demonstração de Gilberto Freyre sobre a singular colonização empreendida pelo português no Brasil. Destarte, ocorreu o desdobramento das relações de cumplicidade e afeição entre o Branco e Negro no Brasil durante os séculos de predomínio da escravidão. Seja por “generosidade” ou interesse, essas relações distinguem nossa colonização dentre outras e será um fator predominante na formação de nossa cultura, mas este deverá ser um assunto para outro artigo.
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Referências 

Artigo publicado no Jornal Diário em 26 de março de 2007. Escrito por: Joandre Oliveira Melo, integrante do grupo Mesopotâmia Mineira:


Projeto Mesopotâmia: Geraldo F. Fonte Boa (Professor da FAPAM e Coord. do Projeto. E-mail: phonteboa@gmail.com.br), Flávio M. S. (Coord. Curso de História FAPAM. HP: www.nwm.com.br/fms), Ana Maria Campos (MUSPAM); Professores formados em História na FAPAM: Alaércio Delfino, Alfredo Couto, Damary de Carvalho, Geraldo Rodrigues, Hoffman Elias e Joandre Oliveira Melo. Aluna do curso de História/Fapam: Isabel Moura. Site FAPAM: www.fapam.edu.br

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