quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Indícios da "Brecha Camponesa" em Pará de Minas

Em um artigo anterior, escrevi sobre as relações entre senhores e escravos em Pará de Minas, no século XIX. Baseando-me em Gilberto Freyre que descreve essas relações como mais “frouxas” ou “doces”. Não obliterando, no entanto, o caráter ignominioso das relações escravistas, ocorria com freqüência, dentro de uma atmosfera de intimidade e cumplicidade à qual contribuía para o aparecimento de um vínculo assaz estreito entre senhores e escravos no Brasil.
Em nossos estudos da documentação do século XIX, de Pará de Minas e região, deparamo-nos com uma situação que poderia se encaixar na afirmação acima. No inventário do senhor Antônio José Ferreira, falecido em 1869, registrado sob o código FCAM-INV-33-05(10), no museu histórico de Pará de Minas, na página 27(frente), encontra-se uma declaração onde o escravo Antônio da Costa Crioulo, assim referido, alega ser credor do falecido, seu senhor Antônio José Ferreira, conforme documentos apresentados e anexos ao processo. Ele solicita aos herdeiros, seus senhores, dignar-se constar como credor do inventariado e assim receber o que lhe é devido; sendo, no entanto, o seu maior desejo e, não se importa em dar como indenização a quantia apurada, para obter a sua liberdade. Abaixo a transcrição de parte da declaração:
Diz Antonio da Costa crioulo anthorizado por sua senhora, D. Genoveva, viúva do finado Antônio José Ferreira seo finado senhor, como prova com o documento junto para figurar em juizo como credor do dito finado, (...) e achando-se o cazal a dever ao supple. [supplicante = o escravo] a quantia de duzentos e trinta e oito mil quinhentos e vinte e oito reis, de principal e prêmios contados até 25 de fevereiro do corrente anno [1870], sendo esta quantia constantes dos quatro creditos juntos, a saber, dous passados por seo finado senhor ao suppe., e dous de dinheiro que seo finado senhor recebeo do suppe. e passou os créditos em nome da Mai do suppe.Thiodora da Costa, por pensar que assim ficava essa quantia mais garantida por ser a Mai do suppe. Liberta; e como o suppe. acha-se avaliado em cem mil reis e só dezeja a sua liberdade, não duvida dár por ella a quantia assima dita que o cazal do finado seo senhor se acha a dever-lhe(...)”(p. 27 frente). Assim descreve, o escravo Antônio da Costa Crioulo a pendência que havia entre ele e o seu senhor. Nas próximas páginas encontramos os recibos escritos de próprio punho pelo senhor Antônio José Ferreira (finado). O mais antigo data de 1840: devido à “(...) comadre Thiodora da Costa” (p.32 frente), no valor de trinta e um mil oitocentos e quarenta réis “(...) dinheiro que me emprestou por um anno”(p. 32 frente). Promete também um “prêmio” (juros). Esta dívida para com o escravo não havia sido quitada até a data de 1870, ou seja, mais de 29 anos. Um segundo recibo no valor de vinte mil réis, referente à compra de dois capados, da “comadre Tiodora”, em 1841. Um crédito de dezenove mil réis, sendo: Sete mil réis de um carro de milho, nove mil réis de um capado e três mil réis em dinheiro, datado de 1843 e, também não fora pago até 1870. Novamente, em 1848, o senhor Antônio José Ferreira redige outro recibo declarando que deve ao seu escravo, Antônio Crioulo, a quantia de trinta e seis mil quatrocentos réis, tomados emprestados. De posse dos referidos recibos, o escravo Antônio Crioulo requisitou e obteve a permissão para figurar como credor do inventariado. A dívida somava cento e sete mil, duzentos e quarenta réis, sendo: quarenta e cinco mil oitocentos e quarenta réis; 42,35 por cento, do total, em dinheiro e sessenta e um mil quatrocentos réis em compras de mercadorias do escravo. A dívida corrigida alcançou, em 1870, data do inventário em epígrafe, o valor de duzentos e trinta e oito mil, quinhentos e vinte e oito réis. O escravo, com idade de 64 anos, fora avaliado em cem mil réis, conforme declaração às páginas 12 e 27. Entretanto, ao escravo só interessava a liberdade, de acordo com suas palavras: “(...) como o suppe. acha-se avaliado em cem mil réis e só dezeja a sua liberdade não duvida dár por ela a quantia assima [238$528] dita que o cazal do finado seo senhor se acha a dever-lhe(...)” (p. 27 frente).
Após quase trinta anos, finalmente, parece que o escravo, Antônio crioulo conseguiu sua tão sonhada liberdade. A julgar pelos documentos e conforme consta no “Auto de partilha” à página 48 verso, onde está deduzido o valor de cem mil réis, – por ter concordado os herdeiros – valor nominal do escravo.
Baseando-nos no relato acima e nas palavras de Gilberto Freyre, parece que no Brasil com freqüência, existiram vínculos de cumplicidade - um “paternalismo” - que norteava as relações entre senhores e escravos. Esse traço singular – elogiado pelo grande historiador como uma estratégia, do invasor português, para conquistar essa enorme quantidade de terras – parece ter corroborado par a construção do atual estado de coisas que hoje formam o imaginário brasileiro. A maneira como se trata o público e o privado no Brasil; essa relação, às vezes promíscua de considerar o público como sua propriedade e de se ver no direito de dilapidá-lo.
Uma análise sobre o fato citado acima e as relações sociais no Brasil, pode dar panos para mangas, mas, esse é assunto para um próximo artigo.
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Artigo publicado no Jornal Diário em 10 de setembro de 2007. Escrito por: Joandre Oliveira Melo, integrante do grupo Mesopotâmia Mineira:


Projeto Mesopotâmia: Geraldo F. Fonte Boa (Professor da FAPAM e Coord. do Projeto. E-mail: phonteboa@gmail.com.br), Flávio M. S. (Coord. Curso de História FAPAM. HP: www.nwm.com.br/fms), Ana Maria Campos (MUSPAM); Professores formados em História na FAPAM: Alaércio Delfino, Alfredo Couto, Damary de Carvalho, Geraldo Rodrigues, Hoffman Elias e Joandre Oliveira Melo. Aluna do curso de História/Fapam: Isabel Moura. Site FAPAM: www.fapam.edu.br

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