sábado, 9 de outubro de 2010

Segundo Conto breve: O esquecimento do chinês

Ninguém ignora que o chinês é uma das línguas mais difíceis de aprender e mais fáceis de esquecer. Um professor da universidade de Pankow constatou que a taxa de esquecimento do chinês é superior ao coeficiente de evaporação da água no deserto de Gobi, nos meses de verão.

Estatísticas mais concretas revelam que um chinês adulto esquece a cada dia, por simples desgaste (sem contar sustos, acidentes e expropriações), uma média de 40 palavras do seu idioma, que deve reaprender, geralmente à noite, se não quiser ver-se empobrecido e até desprovido de linguagem.

Alguns chineses, confiantes na indulgência do futuro, adiam esse problema diariamente e, quando menos esperam, descobrem que já não sabem dizer nem mamãe, nem papai.

Nem sempre são essas as últimas palavras que eles esquecem. Os chineses mais cerimoniosos, educados nas antigas tradições, abdicam de toda possível conversa ao esquecer a frase "pu kan tang", que significa "não sou digno" e é usada principalmente para aceitar uma xícara de chá. Quando se vê um chinês preparando o chá sozinho e no maior silêncio, significa que ele deixou para sempre o círculo dos falantes.

A mera desistência verbal, ou conhecimento zero do chinês, não significa o fim do processo. Há muitos séculos um filósofo formulou -- antes de ficar mudo -- a interessante proposição de que a perda de memória é inesgotável e se aperfeiçoa com a prática. Inclusive, quando já não resta mais nada para esquecer, as fatais 40 palavras diárias vão se acumulando numa espécie de "vermelho" idiomático com o simples recurso de serem computadas como saldo lexical negativo.

Há casos extremos de boas-vidas a crédito que chegam a pendurar as 40 mil palavras do idioma. Então começam a esquecer também o japonês e todas as línguas que não sabem, até morrerem na mais deplorável indigência verbal, e o poeta mais próximo aproveita para sugerir que entraram no reino... como é mesmo o nome?
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Texto publicado na Folha de S. Paulo, domingo, três de outubro de 2010, no caderno Ilustríssima p. 8.
Sobre o texto: Publicados na revista argentina "Leoplán", em 1964, estes minicontos teriam, segundo o autor, "uma remota dívida com Borges, mas principalmente com Macedonio Fernández, o pai de todos os humoristas argentinos". Não figuram na edição de "Essa Mulher" (Ed. 34). Rodolfo Walsh, Tradução Rubia Prates Goldoni.Extraído da Folha de S. Paulo

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