quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Melancolia

Hoje estou aqui, sentado à frente de uma máquina que me revelam imagens que nunca pensei que as contemplaria encerradas em uma moldura posta sobre a estante da sala. Imagens rápidas de pessoas

em ritmo babélico entrando e saindo de aranha-céus. Veículos puxados por motores a explosão, que dariam inveja ao próprio Hefesto. Enfim, um mundo frenético, plástico e melancólico. Esse espetáculo me faz rir e às vezes chorar; outras, me deixam irritado e algumas vezes complacente. Todavia, é tudo o que sinto, além das dores, resultado do tempo sobre meu corpo.

Estamos no ano de 1984, e, no auge dos meus noventa e seis anos, tudo parece opaco, sem vida. A minha frágil compleição não me permite mais andar. Já ouço com dificuldade e enxergo o mundo através de grossas lentes que deturpam a trajetória da luz para o ponto onde minha retina possa captá-la. Do sexo, cruel algoz, libertei-me.Quase todos que amei já se foram. Tudo o que me resta, são as lembranças do passado.

Na situação que me encontro, fortes lampejos oprimem meu cérebro como um pesadelo terrível – do que outrora fui e da estirpe à qual pertenço. Um turbilhão de idéias percorre a minha mente. A mais terrível delas é ter consciência de que estou no mundo. Sentir-me homem. Compartilhar do sentimento de degeneração que os acomete.

Pobre homem, de todas as criaturas que caminham e vegetam sobre a face da terra ele é, talvez, o mais infeliz. Não desfruta da liberdade que poderia usufruir. É capaz de compreender o que o cerca, os acontecimentos, entretanto, por saber tudo isso, sofre. Vive a mais ignóbil das existências. Sua fugaz passagem por este mundo é, praticamente desperdiçada em fatigantes horas de trabalho para manter uma existência plástica, vil. Seu corpo é marcado pela natureza do seu labor. De sua mente nada emana, a não ser sobre o seu ofício. E as horas livres, anseia que sejam breves para que no outro dia desfrute do seu martírio.

Desejar! Ele ainda deseja, no entanto, quando o alvo do seu desejo é alcançado, uma tragédia acomete-o. É como o viajante que aspira pelo seu lar; desfrutar das carícias da sua esposa, do burburinho dos filhos e dos cuidados com eles. Porém, quando retorna com o lucro de sua fadiga, logo vê-lo esvair-se rapidamente. Então, tomado de grande repulsa por sua situação lança-se novamente às viagens em busca de mais lucros, causa da sua felicidade.

Por outro lado, os anos me concederam um bálsamo. Fui beneficiado por uma existência relativamente longa. Vivi quase toda minha vida na fazenda onde nasci. Na aurora da minha vida desfrutei do trabalho duro e cansativo que a terra impõe aos homens. Mas, também compartilhei da água límpida que brotava no grotão. A melodia dos pássaros e o mugir do gado aproximando-se do curral nas ensolaradas manhãs de verão. As acrobacias das audaciosas andorinhas. Senti o roçar dos pés descalços sobre a grama orvalhada e o doce aroma exalado pelas flores silvestres. À noite o coaxar das rãs e o sibilar dos grilos parecem espantar os fantasmas da escuridão e as constelações viajantes dos pirilampos a salpicar no campo. A zoada das tanajuras após uma breve chuva.

Sinto-me feliz que o coração dos homens ainda guarda a doce alegria de ver o fruto do seu trabalho sobre a mesa; que a terra que lavrou e sobre a qual lançou a semente, agradeceu-lhe com benevolência. E a lembrança dos agradáveis dias que dispôs a cultivá-la e a apreciar o brotar da semente, o romper das folhas e o amadurecimento dos frutos.

Assim é o homem; por mais que queira mudar as suas origens, que lute para se libertar da sua natureza, por mais parafernálias que invente, a terra, sempre será a mãe generosa que o gerou em seu ventre, o nutriu e, por fim, abrigará seu corpo sem vida.

Joandre Oliveira Melo

Um comentário:

  1. Este é um texto muito forte!
    Encarar a realidade da vida ...
    Abraços,
    Terezinha

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Agradeço pelo seu comentário.