quinta-feira, 4 de março de 2010

A garriça

Um dia desses, quando chegava em casa para o almoço, antes que o portão da garagem se abrisse, eu me perdi em pensamentos assistindo a luta de uma intrépida garriça macho que, apesar de pequeno, não esmorecia em sua tarefa: construir, trançando graveto por graveto, às vezes algo diferente, quase irreconhecível que encontrara no lugar do graveto e, que ponderara ser de valia tanto quanto o graveto para a sua obra, que trazia no seu bico. Ao posar no local do ninho começava a luta; enfia daqui, puxa o de baixo, ajeita o outro lado, enfim, após algumas bicadas, aqui e acolá, no final parecia mais um amontoado de gravetos impossível de se descobrir como foram entrelaçados, onde começa ou termina. Era praticamente um milagre tudo aquilo fazer sentido e permanecer unido durante todo o período em que viveriam lá dentro com sua companheira e sua prole.

Recordei-me, com saudades, de minha mãe a apontar-me uma dessas garranchada ensinando-me que eram ninhos de garrinchas, assim ela chamava estas pequenas aves de nossa região. Fugazes construções, como perduravam, como resistiam aos ventos dependurados apenas por uma tênue cordoalha aos galhos de uma aroeira ou de um ipê; parece que não escolhem onde atar seus ninhos. Basta, apenas, que exista algo onde possam fixar o primeiro graveto, e lá estão a entrelaçar aqueles gravetinhos brindando-nos com construções de fazer inveja ao mais hábil dos engenheiros, driblando, até mesmo, forças inexpugnáveis.

Inesperadamente, o nosso pequeno e incansável Sísifo decola do alto do seu ninho e num voo rasante risca o ar cerce ao teto do meu carro. Pousa logo adiante, em um lote vago; para por alguns instantes a observar-me, sem saber que eu o observo e o admiro.

Eu comparava a tarefa daquela criaturinha à minha luta diária, à minha vida. Por alguns momentos tento aproximar minha existência à daquele singelo pássaro; o provedor, sou como ele, o provedor da minha companheira e da minha prole, diferentes por fora, mas, no fundo, assaz parecidos: ambos provedores da existências de outros seres. Nossa única missão é esquecermos de nós mesmos e projetarmos todas as nossas forças na proteção e conforto de nossa prole. E, ao fim, cairmos ao chão extenuados, porém, aliviados, pois nossa batalha estará vencida. Mas o bravo pássaro logo embrenha-se no capinzal alto e verde. Lá se vai nosso herói até a garranchada que, por certo encontro naquelas terras dadivosas, obra de um roçador ou pode ser um arbusto que chegou ao seu termo, secou sua seiva e agora deixa-se quebrar ao bico da garriça, pedaço por pedaço, para servir-lhe de abrigo. A garriça escolhe com sabedoria qual a melhor parte daquela garranchada levar.

Assim passam os dias, o calor é intenso, mas após algumas semanas começa a cair sobre a cidade o líquido providencial. O ninho do nosso herói está pronto, mas vejo com grande receio o local escolhido pela garriça. Construíra seu ninho em um poste que sustenta uma rede de cabos elétricos que atendem a nossa rua, mais especificamente entre a duas alças metálicas de um transformador elétrico, equipamento responsável por abaixar uma tensão elétrica mais alta (alguns milhares de volts) em uma tensão mais baixa (algumas centenas de volts) para energizar os cabos que alimentam nossas casas. Obviamente um local extremamente perigoso até mesmo para um pássaro.

Já era março e numa dessas noites chuvosas, ao passar da meia-noite, ouço um barulho característico de contato com redes elétricas. Todas as luzes da rua, das casas e ruas próximas apagam-se repentinamente. Todos sabem que as superfícies molhadas conduzem melhor os elétrons, que trafegam nos fios das redes elétricas das cidades e movem ou acendem ou giram os equipamentos de nossas casas. E o barulho que ouvi pareceu-me grave; e fora. Eu podia sentir, parecia que uma grande descarga elétrica achara um caminho perfeito que a conduzira direto à terra, seu fim único.

Logo pensei na pobre ave; estava certo, ao abrir a porta, já avistei o transformador, que está fixado em um poste bem próximo da minha casa, e inerte, ainda esfumaçante, jazia o cadáver do nosso intrépido herói. Como chovia, pode ser que tentasse melhorar a vedação do seu ninho e aproximara perigosamente da rede elétrica. Sua companheira aguardava paralisada, à entrada do ninho, o regresso do seu provedor. Ela murmurava um triste piado, como se chamasse alguém. logo o murmúrio pareceu uma lamentação e ela voou até o corpo chamuscado do seu pobre companheiro, mas logo retornou ao ninho onde ajeitou-se como pôde sobre seus ovos e lá permaneceu, defendendo-os e aquecendo-os toda a noite.

Como homem, em vão lamentei aquela situação, entristeci-me pela fêmea e seus futuros filhotes, mas já não havia mais nada o que poderíamos fazer: nem a garriça fêmea nem eu. Voltei também para minha casa, meus filhos dormiam tranquilamente. Estive um momento com eles. Em seguida fui para meu leito. Minha esposa me aguardava ansiosa e assustada, pois ao ouvir o barulho inesperadamente saltei da cama e fui até a rua. Ainda estava escuro, devido a minha rapidez em levantar-me, mas em alguns segundos as luzes acenderam novamente. Expliquei o fato à minha esposa que sentiu-se triste pelo acontecido, mas ao saber que nossos filhos estavam bem deitou-se mais tranquila e fechou os olhos, como se quisesse dormir. Permaneci, ali, sentado, à beira da cama, por mais alguns minutos sentindo-me impotente e triste. Em meus pensamentos passava-se algo parecido comigo; o acontecido assustara-me, o que minha família faria sem mim para cuidar deles?

Enquanto o tempo passava tudo voltava ao normal; a luz acendera, eu retornara da rua e estava seco e seguro, tudo voltava à normalidade, apenas o nosso herói não retornaria mais, nunca mais à sua amada e à sua prole.

Mas a natureza é a mãe sapientíssima que nos ampara; pela manhã com o sol já se levantando, mais uma vez recomeçava minha luta diária. Porém, ao olhar para o ninho vi que a companheira do nosso herói não estava mais lá, nem seus pequenos ovos. Para lá, nunca mais voltou. Talvez sua prole tenha sido vítima de uma ave de rapina e a garriça fêmea tenha buscado outra garriça macho para procriar.

O corpo da garriça macho já começava a ser devorado por um batalhão de formigas que disputavam freneticamente cada centímetro do corpo inerte e sem vida do nosso pobre herói.

Joandre Oliveira Melo.

Um comentário:

  1. Joandre,
    Muito boa a sua história. Você tem navegado bem de um estilo de texto para outro.
    Parabéns!
    Terezinha

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Agradeço pelo seu comentário.