Frequentemente
quando transcrevemos e analisamos documentos antigos de Pará de Minas e região
no acervo documental “Mesopotâmia Mineira”, deparamo-nos com fragmentos de
texto que desnudam a forma como o povo oitocentista interpretava a trama social
na qual estavam inseridos.
Sérgio
Buarque de Holanda analisa, em sua obra “Raízes do Brasil”, a inclinação do
europeu (português), ocupante das terras do Brasil, pelas glórias e riquezas
que destas terras podiam ser retirados. As atividades profissionais –
principalmente aquelas braçais, e tão necessárias ao cultivo das vastas terras
encontradas para obter as riquezas desejadas – são consideradas, no entanto,
desprezíveis e indignas de homens nobres e valorosos. Essa compleição avessa
aos trabalhos braçais, a aptidão à uma vida sossegada distante do percalço da
manutenção de uma existência difícil nos trópicos e reforçada pelos títulos que
não raro são citados nos documentos – como capitães, tenentes, coronéis, majore
– gravados a bico de pena para a posteridade, moldam o imaginário dos
Portugueses no Brasil e em nossa região.
Essa
“ética do ócio” contribuirá para a manutenção de um sistema de exploração do
outro – fundamentado na tradição Ocidental, uma vez que há registro desse
comportamento desde os antigos gregos (Florenzano, “O mundo antigo: economia e sociedade”. São Paulo: Brasiliense,
2004. p. 42) – pelos “nobres” europeus detentores de grandes propriedades. Não
raro, até mesmo aqueles que nem tantas posses têm ou, que as perderam no
decorrer dos anos, usufruam e assimilem esse sistema.
Saint-Hilaire
em suas viagens por Minas Gerais, no início do século XIX, relata as grandiosas
manifestações religiosas observadas por ele. A princípio ele fica maravilhado com
as portentosas manifestações de fé. No entanto, ao verificar mais de perto,
essa imagem de religiosidade cae por terra. Como ele mesmo escreve, a religião
é só verniz, ou seja, não tem profundidade. O que se deseja realmente é
sobrepujar irmandades – associação ou confraria – rivais; impor-se com
distinção, com autoridade aos outros, externar uma condição de superioridade
reforçando um distanciamento social. Essas manifestações prestavam-se, afinal,
a demonstrar o quanto nossa sociedade estava engessada, dividida em castas
intransponíveis e à manutenção do Status-quo.
Através
da análise em documentos do século XIX, de Pará de Minas e região, podemos
destacar alguns fragmentos que comprovam as palavras de Sérgio Buarque de
Holanda e Saint-Hilaire.
O
processo crime FCAM-PRC-XX-03(45) de 1892, suposto homicídio ocorrido em Cajurú
em 1890, analisado pelo grupo, nota-se a insistência ao referir-se ao réu,
identificando-o sempre – e, como já havia sido abolida a escravidão no Brasil –
como “Germano ex-escravo de Ribeiro”.
Essa designação é como um estigma que parece demarcar o lugar do indivíduo
citado no meio social.
Em
outro momento, no documento 2490, processo 1299, maço 47, “inventario dos bens do finado Tenente
Coronel Manoel Teixeira Duarte”, falecido em 18 de maio de 1881 deixando
testamento. O senhor Manoel Teixeira Duarte, distinto comerciante, conforme
pôde-se deduzir com a leitura do inventário e, também em outros documentos, da
antiga cidade do Pará, era possuidor do título de “Tenente Coronel”, e que é
citado com insistência ao longo do processo, sempre anteposto ao seu nome.
Na
Prestação de contas de 1858, sobre a administração das obras de construção da
antiga matriz de Pará de Minas, o escrivão refere-se ao administrador: “Diz o Promotor de Capelas e Resíduos ao que
sendo fallecido o Alfs. [Alferes] Ricardo
Joaquim Leitão(...)” (p.2).
No
documento 6186, processo 1948, maço 69, inventário dos bens de Custódio
Rodrigues Nogueira Penido, de 1886, pode-se ler ao longo do documento, quando
refere-se ao inventariado, “Tenente
Coronel Custódio Rodrigues Nogueira Penido”. No documento 2613, processo
1413, maço 53, Avaliação e partilha dos bens deixados pelo finado Pedro Dornas
dos Santos, de 1887, quando citado aparece:”Alferes
Pedro Dornas dos Santos”. Mais uma vez o título está presente precedendo o
nome do cidadão.
Além
dos títulos citados, quem não se lembra daqueles conferidos, pela coroa ou o
Imperador, àqueles endinheirados senhores que se destacavam no cenário nacional
no século XIX: São Barões; Viscondes; Marqueses. Irineu Evangelista, por
exemplo, vira Barão de Mauá.
Isto
posto, observando esses pequenos fragmentos e lembrando-nos de alguns ilustres conterrâneos
que se eternizaram batizando nomes de ruas de nossa cidade, só para citar
alguns: Major Silvino; Coronel Domingos Justino; Major Manoel Antônio; entre
outros. A observação de pequenos detalhes em documentos, a priori inocentes,
podem ajudar a reforçar ou, ainda, refutar teses. Os indícios para reconstruir
a história de um local, podem estar “soltos” por ai, basta que alguém faça a
ligação conectando-os às teorias históricas.
Finalmente, a premissa de que em nossa sociedade
impera o gosto pelos títulos, pela vida tranquila, sem as preocupações com a
manutenção da existência e o desprezo pelos trabalhos manuais citados por
Sérgio Buarque de Holanda e o “vê tudo”, o cavaleiro andante do século XIX,
Saint-Hilaire, parece se fundamentar quando levantamos alguns fragmentos
colecionados nos documentos antigos de nossa região.
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Referências
Artigo publicado no Jornal Diário em 03 de dezembro de 2007. Escrito por: Joandre Oliveira Melo, integrante do grupo Mesopotâmia Mineira:
Projeto
Mesopotâmia: Geraldo F. Fonte Boa
(Professor da FAPAM e Coord. do Projeto. E-mail: phonteboa@gmail.com.br), Flávio M. S. (Coord.
Curso de História FAPAM. HP: www.nwm.com.br/fms), Ana Maria Campos (MUSPAM); Professores formados em
História na FAPAM: Alaércio Delfino, Alfredo Couto, Damary de Carvalho, Geraldo
Rodrigues, Hoffman Elias e Joandre Oliveira Melo. Aluna do curso de
História/Fapam: Isabel Moura. Site FAPAM: www.fapam.edu.br
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