sábado, 12 de janeiro de 2008

O enfrentamento dos mundos


Hoje iniciando a leitura da obra: “O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil” de Darcy Ribeiro. Deparei-me com uma passagem que não poderia deixar de postar em meu blog.No início do livro, em seu capítulo I, Ribeiro discorre sobre o apossamento das terras do Brasil dos seus verdadeiros donos: os indígenas que aqui viviam. Ele narra o choque das culturas, o primeiro deslumbramento dos dois povos separados pelo oceano e depois o embate dos povos indígenas contra a sua submissão.

No enfrentamento dos mundos, a primeira visão dos “Invasores” era que haviam aportado no éden. As maravilhas que vislumbravam, os corpos perfeitos e plenamente adaptados para a vida selvagem, a atração irresistível pelas mulheres símbolos da perfeição – a moura perfeita – , corpos adornados por plumas coloridas. E eles, navegantes, barbudos, hirsutos, fedentos, infestado de chagas, atacados que eram pelo escorbutos, corpos dementes.

Pouco mais tarde a visão idílica se dissipa, aqueles homens e mulheres, descendentes de Adão e Eva, de vida livre, que não conheciam o pecado, tinham um “(...) defeito capital: eram vadios, vivendo uma vida inútil e sem prestança. Que é que produziam? Nada. Que é que amealhavam? Nada. Viviam suas fúteis vidas fartas, como se neste mundo só lhes coubesse viver.”(RIBEIRO, 2006: 41).

Aos olhos desse povo selvagem que preferia mais dar do que receber, amantes da liberdade, viventes do presente, aqueles homens vindos do além mar pareciam aflitos demais, atiravam-se aos afazeres como se tudo fosse terminar no dia seguinte. Avançavam sobre as caças, as florestas como se fossem acabar, sobre os peixes como se os rios e o mar fossem secar. Matando e acumulando, mais do que podiam comer ou usar, tudo isso era demais para a compreensão dos povos selvagens que aqui viviam.

Ribeiro passa então a citar Léry em um diálogo de um Tupinambá com um estrangeiro:

Os nossos tupinambás muito admiram dos franceses e outros estrangeiros se darem ao trabalho de ir buscar os seus arabutan. Uma vez um velho perguntou-me: Por que vindes vós outros, maírs e pêros [franceses e portugueses] buscar lenha de tão longe para vos aquecer? Não tendes madeira em vossa terra? Respondi que tínhamos muita, mas não daquela qualidade, e que não a queimávamos, como ele o supunha, mas dela extraíamos tinta para tingir, tal qual o faziam eles com os seus cordões de algodão e suas plumas.

Retrucou o velho imediatamente: e porventura precisais de muito? – Sim, respondi-lhe, pois no nosso país existem negociantes que possuem mais panos, facas, tesouras, espelhos e outras mercadorias do que podeis imaginar e um só deles compra todo o pau-brasil com que muitos navios voltam carregados. – Ah! Retrucou o selvagem, tu me contas maravilhas, acrescentando depois de bem compreender o que eu lhe dissera: Mas esse homem tão rico de que me falas não morre? – sim, disse eu, morre como os outros.

Mas os selvagens são grandes discursadores e costumam ir em qualquer assunto até o fim, por isso perguntou-me de novo: e quando morrem para quem fica o que deixam? – Para os seus filhos se os têm, respondi; na falta destes para os irmãos ou parentes mais próximos. – Na verdade, continuou o velho, que, como vereis, não era nenhum tolo, agora vejo que vós outros maírs sois grandes loucos, pois atravessais o mar e sofreis grandes incômodos, como dizeis quando aqui chegais e trabalhais tanto para amontoar riquezas para vossos filhos ou para aqueles que vos sobrevivem! Não será a terra que vos nutriu suficiente para alimentá-los também? Temos pais, mães e filhos a quem amamos; mas estamos certos de que depois da nossa morte a terra que nos nutriu também os nutrirá, por isso descansamos sem maiores cuidados (Léry apud Ribeiro, 2006: 41-2).


(*) Imagem de Darcy Ribeiro, site da Academia Brasileira de Letras. Disponível em http://www.academia.org.br/abl/media/darcy_ribeiro.jpg. Em 12/01/2008
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Referências Bibliográficas

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. (pp. 11-42).

Um comentário:

  1. Joandre, às vezes eu fico pensando se criticar o capitalismo, o consumismo e outros "ismos" burgueses não é um ato absolutamente patético, já que a gente trabalha para ganhar dinheiro para a nossa família consumir, muitas vezes negando nossa originalidade única, nosso verdadeiro ser, abrindo mão de um prazer verdadeiro por prazeres "enlatados", "pré-fabricados": "quitei minha casa", "comprei um carro novo", "formei meu filho", "ganhei um aumento", "peguei a gerência do meu setor"...e assim vai, até "abotoarmos o paletó": "fulano foi um grande sujeito. Viveu para a família". Se a gente não lutar verdadeiramente contra a alma burguesa, seus desejos, seus sonhos e promessas de felicidade, não adianta escrever nem falar nada. Se a gente não faz a revolução em nós, para quê falar?

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