domingo, 29 de julho de 2012

O Bardo de Lima

O Bardo de Lima, como ficou conhecido aquela criatura despojada de uma compleição saudável, arrastando sua humanidade com certa cadência e grande dificuldade pelas ruas de Lima, não fosse a dedicação homérica de sua mãe a enfiar-lhe comida pela boca, naquela “(...)larva de hominídeo”, expulso do seu útero “(...) teria [ele] volatilizado”.

Seu pai, homem de uma fé exacerbada beirando à ignorância religiosa, atribuía que aquele feto vingara graças ao um milagre do Senhor de Limpias, para o qual entregara aquele títere, solidificação dos líquidos de suas gônadas escrotais.

em certa época, deu a impressão de que ia acabar tão religioso como o pai.(...) Ao vê-lo embutido na capa de coroinha, que sempre ficava grande para ele, e ao ouvi-lo recitar com devoção, em bom latim, nos altares das trinitárias, de San Andrés, El Carmem, Buena Muerte, e ainda da igrejinha de Cocharcas(...) María Portal, [sua progenitora], que havia desejado para seu filho  um tempestuoso destino de militar, de aventureiro, de irresistível conquistador, reprimia um suspiro. Mas o rei dos confrades de Lima, Valetín Maravillas, sentia o peito inchar diante da perspectiva de  que o fruto de seu sangue fosse padre.

Todos se enganavam, o menino não tinha vocação religiosa. Era dotado de intensa vida interior e sua sensibilidade de círios estralejantes, de defumadores e rezas, de imagens consteladas de ex-votos, de ladainhas, ritos, cruzes, de espiritualidade. (pp. 395-6)

Crisanto Maravillas, o bardo de quem estamos falando, conheceu seu primeiro amor no claustro das irmãs descalças, pois sua mãe, com dedos de fada preparava guloseimas para as freirinhas que as vendiam para “(...) levantar fundos para as missões da África”.

Fátima, que também contava dez anos, era fruto rejeitado de um amor impossível. Fora deixada, ainda bebê, às portas do claustro com a seguinte mensagem:

Sou filha de um amor funesto, que desespera uma família honrada, e não poderia viver na sociedade sem ser uma acusação ao pecado dos autores de meus dias que, por terem o mesmo pai e a mesma mãe, estão impedidos de se amar, de ter a mim, de reconhecer-me. As senhoras, Descalças bem-aventuradas, são as últimas pessoas que podem criar-me sem se envergonhar de mim, nem envergonhar a mim. Meus atormentados progenitores retribuirão à congregação com abundância esta obra de caridade que abrirá às senhoras as portas do céu.(p. 397)

O talento de Crisanto Maravillas revelou-se a público bem cedo; aos quatorze anos em quermesses à companhia de sua mãe, mas sua habilidade de compositor despontou em carreira meteórica. Não havia um aspirante a cantor ou cantora que iniciasse sua carreira interpretando algumas de suas composições. Mas, será que o bardo será feliz em seus empreendimentos? Em sua vida amorosa? Senhor de um corpo debilitado esgueirando-se pelas ruas de Lima como um aleijado, será seu futuro promissor?
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Referência
VARGAS LLOSA, Mário. Tia Julia e o escrevinhador. trad. José Rubens Siqueira, Rio de Janeiro: Objetiva, 2010 (excertos extraídos do cap. XVIII pp. 393 a 397).

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